Curtas Heloisa Passos
A solidão em meio à cidade pode se tornar ponto de partida para observar os outros: as pessoas que passam na rua e não conhecemos as histórias, os encontros fortuitos e passageiros, a mudança e a permanência da paisagem evocadas no modo de ocupar a rua de cada um. Seguindo estes caminhos, a programação da semana conta com três curta metragens – Osório (Heloisa Passos e Tina Hardy, 2008), Do tempo que eu comia pipoca (Heloisa Passos e Catherine Agniez, 2001) e Viva volta (Heloisa Passos, 2005) -,todos finalizados em cópias 35mm e recentemente restaurados através da Lei Paulo Gustavo. Nos filmes, narrativas pessoais mesclam-se com as respectivas cidades das quais emanam e a qualidade da película propicia às imagens atmosferas temporais flutuantes. O trânsito da memória, do corpo no espaço e do próprio tempo, compõem uma sensibilidade cinematográfica atenta às transformações testemunhadas pelos olhos das personagens.
Em Osório pode-se pensar na ideia de uma solidão povoada: o filme parte da perspectiva de uma mulher em seu apartamento, de grandes janelas, à observar os movimentos na rua. Contempla, na duração de uma madrugada e uma manhã, a praça General Osório, no centro de Curitiba, e todas as pessoas que passam por ela. Há aqui uma espécie de voyeurismo, tratando-se de uma observação silenciosa e encantada pelas histórias que seu campo de visão alcança: crianças jogando bola, garis na pausa do trabalho tomando café, pessoas se exercitando, as poças de água da chuva e homens jogando cartas. Quando o avermelhado noturno da película prolonga-se nos raios de sol da manhã refletindo nos prédios, sublinhando a passagem do tempo e a permanência da mulher em sua janela de visão, o curta-metragem lança a pergunta: o que acontece quando aqueles que observamos nos olham de volta?
Também em um dia chuvoso, Do tempo que eu comia pipoca acompanha uma personagem que gosta de caminhar sozinha pela cidade. Diferente da mulher que vemos em Osório, que observa a uma certa distância o desenrolar dos acontecimentos urbanos, aqui a contemplação se dará no próprio nível da rua, por entre os edifícios, hotéis, calçadas, bares e parques de diversão. Oscilando entre uma atmosfera de suspense e delicadeza, nota-se que a mesma está a procura de algo. O encontro inesperado com outro homem, de jeito doce e desajeitado, coloca-a mais próxima de sua “busca pelo tempo em que comia pipoca”, como diz. Os planos seguem suas idas e vindas, vestida de um casaco vermelho que destaca-se em meio ao azulado invernal da paisagem, em experiências que acionarão breves lapsos de memória – como o simples gesto de comer uma pamonha quentinha e os versos de um livro de infância.
Mais próximo do documental, Viva volta acompanha o retorno de Raul de Souza, grande trombonista brasileiro, à sua cidade natal, Rio de Janeiro. Conhecido por ter aproximado a gafieira carioca da improvisação do jazz, encontra possibilidades mais frutíferas fora do Brasil, morando nos Estados Unidos, México e França. Seu retorno evoca uma série de reflexões, tanto sobre sentir-se pouco reconhecido em seu próprio país, como também sobre as raízes de seu aprendizado musical. Ele conta, por exemplo, que aos 12 anos começa a trabalhar como tecelão em uma fábrica – mesmo assim, levava o trombone consigo e tocava-o no banheiro para colegas. Os relatos de Raul mesclam-se com imagens azuladas da cidade carioca, aproximando-se daquilo que o músico anuncia ao início do curta: “a cor do meu som é azul”, ele diz. A fotografia e direção de Heloísa Passos incorporam a experiência de trânsito vivida por ele, acompanhando-o por aeroportos e pelas ruas da cidade, mas também registram os encontros que permanecem e se prolongam: Raul de Souza e Maria Bethânia, de admiração mútua e de longa data, reencontram-se em 2005 para tocarem juntos uma vez mais.
Barbara Bello