embauba play convida Adilson Marcelino
Mostra Maurílio Martins Conversa
Por Adilson Marcelino
Parece que foi ontem o ano de 2009. E posso dizer isso porque, de certa forma, estava lá quando aconteceu seu nascedouro: a fundação da Filmes de Plástico. Hoje, quase uma década e meia depois, essa produtora de Contagem se tornou indesviável no cinema brasileiro contemporâneo. De lá para cá, seus filmes e seus integrantes, os cineastas André Novais Oliveira, Gabriel Martins e Maurílio Martins e o produtor Thiago Macêdo Correia, rodam o país e o mundo e vêm instaurando todo um imaginário de cinema. Um imaginário de redesenho de geografia, de símbolos, imagens e coletivo, mas não circundado apenas ao documento do real, e, sim, ao da fabulação. É um cinema que mira sua lente para corpos periféricos e temas como a precariedade do trabalho e a força de que esses personagens se imbuem para seguir adiante. E é cinema de estética, não só de mergulho visceral no social e no real a que muitos parecem querer reduzir. É cinema de pessoas, de busca e de capturação delas. É cinema de beleza.
Ao mesmo tempo, a Filmes de Plástico se tornou tão forte que, por vezes, seus próprios integrantes parecem se confundir e “desaparecer” entre eles mesmos. Pois ainda que sejam de Contagem, ainda que sejam da periferia e ainda que sejam amigos, eles, logicamente, são diferentes. E assim como são seus filmes, que capturam pessoas, eles também são pessoas cujas afinidades os irmanam, mas, penso, que é das diferenças que essa força se agiganta. Essa percepção do coletivo embaçando o individual é bem nítida para mim, pois até mesmo eu, quando me pedem escolhas de filmes, por vezes, tenho vontade de indicar a própria Filmes de Plástico, devido ao seu assombroso conjunto de qualidade, ou me esqueço de indicar seus filmes, ou, ainda, acabo indicando outros para dar visibilidade, como se os filmes da produtora não precisasse mais dessa menção.
Essa percepção, que assumo ser toda minha, a das diferenças que vejo neles e desse embaçamento, tem muito a ver com o fato de ser amigo de Maurílio desde meados dos anos 2000. Assim como já, no início da carreira de André, ter escrito sobre seus filmes, fato que fez o próprio André, que não conhecia, enviar-me outros filmes para conhecer melhor seu cinema. Já Gabriel foi o mais distante, a aproximação de fato veio só depois. Se com Maurílio discutia seus filmes desde a ideia, passando pela sinopse, roteiro e elenco, o que em outra medida também aconteceu com André, com Gabriel fui ver mais de perto a feitura de seus filmes somente muito tempo depois. E acabei tendo a felicidade de atuar nos filmes dos três.
O talentosíssimo veterano apresentador Tutti Maravilha, quando Gabriel e Maurílio foram ao seu programa, o clássico Bazar Maravilha, na Rádio Inconfidência, logo de cara tascou a pergunta: “Vocês são casados?”. O sobrenome comum muitas vezes sugere o parentesco entre os dois, sendo que essa possibilidade suscitada por Tutti, além de ter achado engraçada quando a ouvi no programa, também achei linda e perspicaz. Pois ali, naquela graça, havia também a sinalização de que, se Gabriel é preto e Maurílio é branco (ou seria pardo? E ainda que pardo, para mim, já há alguns anos, seja sempre negro), seria mais “provável” o sobrenome de casados.
Se para mim a Filmes de Plástico mistura e embaça seus integrantes, o fato de André e Gabriel serem negros os mistura ainda mais, o que percebo, inclusive, nos olhares externos. Na verdade, os três são talentosíssimos e, penso, o assombro que é a Filmes de Plástico não se dá somente pelas afinidades de seus integrantes, mas pelos talentos individuais e diferentes, de cada um deles – incluindo aí Thiago na produção. E eu, que sou preto, para além do lado afetivo e pelo evidente talento de Maurílio, presto uma atenção redobrada sobre seu cinema. É o mesmo que faço, logicamente levando-se em conta todas as diferenças, em relação ao cinema de Walter Hugo Khouri, meu cineasta brasileiro predileto. Amo o cinema de Zózimo Bulbul e me reconheço nele, mas é ainda mais difícil amar, e amo, o cinema branco de Khouri, o que, de imediato, torna o meu deslocamento para ele ainda mais complexo. Obviamente, não digo com isso que o cinema de Maurílio seja branco no sentido normativo, mas é exatamente o fato de ele ser um branco (ou pardo? ou negro?) periférico e de formação evangélica, que me salta aos olhos a forma rigorosa, em estética e ética, com que vem construindo sua obra cinematográfica, incluindo aí como se dá sua fabulação e como sua lente mira esses corpos periféricos, como ele e eu, e pretos, como eu.
Foi por isso que, quando convidado por Daniel Queiroz, para essa curadoria de mostra da Embaúba, veio-me imediatamente a vontade de botar em foco essas diferenças e pinçar esse cinema absolutamente arrebatador de Maurílio Martins, que, logicamente, é Filmes de Plástico e é também singular. Escolhi como nome Mostra Maurílio Martins Conversa, porque é daí que vejo a gênese da grandeza de Maurílio, da sua forma articulada de conversar, não pelo verniz do intelectualismo – que também domina, não o verniz, ainda bem, mas o poder de reflexão -, mas em seu sentido mais amplo. As conversas comigo, quando trabalhávamos juntos no mercado exibidor de cinema, nas caminhadas a pé do trabalho na Savassi para o centro, em Belo Horizonte, nas suas e nossas conversas e na admiração com e pela arte popular – cinema popular, canção popular, novela (“Tieta”), rádio AM. As suas, e minhas, conversas com o cinema americano, com o cinema de gênero, com o cinema da Boca do Lixo, com o cinema contemporâneo. E, ainda, nas suas conversas públicas.
Quando desenhei a Mostra Maurílio Martins Conversa, estruturei-a em recortes: “Filmes Maurílio Martins”; “Maurílio Conversa Filmes Embaúba”; “Maurílio Conversa Histórica”; “Maurílio Conversa Mais Filmes”. Todos as obras que compõem os recortes são títulos importantes para mim e também, penso e proponho, para Maurílio a partir desse meu olhar sobre ele e seu cinema
A mostra histórica acabou ficando de fora, mesmo porque, para além das dificuldades de liberação, ela até fugia um pouco do formato da curadoria da Embaúba, que propõe filmes contemporâneos – ainda que o fato de não ter sido concretizada esteja mais ligada à primeira questão. Para ela, havia escolhido: Ilha das Flores, de Jorge Furtado; Alma no olho, de Zózimo Bulbul; A Ilha dos prazeres proibidos e Falsa loira, de Carlos Reichenbach; O bom marido, de Antonio Calmon; Oh, Rebuceteio!, de Cláudio Cunha. O Ilha porque é filme marco para o cinema de Maurílio. Os de Carlão porque, além de seu cinema ser central na obra de Maurílio, com seus generosos e inteligentíssimos Olhos Livres o saudoso cineasta logo se encantou com o curta Contagem, de Maurílio e de Gabriel, já impactado desde a abertura do filme. Já Calmon e Cunha, por serem geniais no cinema popular e cuja fanfarronice maravilhosa de puro cinema nos dois filmes elencados aqui tem muito a ver com Maurílio, comigo e com a nossa história.
A “Filmes Maurílio Martins”, obviamente, está estruturada a partir de seus filmes, seja os dirigidos ou codirigidos por ele, como os impressionantes curtas Contagem (com
Gabriel), Quinze, assim como o belíssimo Constelações, filme que, penso, ainda não teve o reconhecimento que merece. Amante dos esportes e das histórias de seus personagens, dirigiu com Adirley Queirós Um Homem que voa: Nelson Prudêncio, produzido pela importante e premiada Bananeira Filmes, de Vania Catani. Há também aqueles em que participou em diferentes funções técnicas e como ator, todos eles filmes de rigor estético: Filme de Sábado, Rapsódia para um homem negro e Nada, de Gabriel Martins; Fantasmas e Pouco mais de um mês, de André Novais Oliveira, e Lembranças de Mayo, de Flávio C. Von Sperling.
A “Maurílio Conversa Filme Embaúba” apresenta filmes que fazem parte da plataforma e, penso, tão fundamentais quanto os outros nessa proposta de conversa com o cinema de Maurílio. São eles: A chuva nos telhados antigos e Fronteira, de Rafael Conde; No meu lugar, de Eduardo Valente; As horas vulgares, de Rodrigo Oliveira; Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans, Vida, de Paula Gaitán; Batguano, de Tavinho Teixeira; Estado Itinerante, de Ana Carolina Soares, Sandra Espera, de Leonardo Amaral. No meu lugar, de Valente, é, para mim, um dos mais importantes filmes dos anos 2000 e sei que é caro também para Maurílio. É obra de cineasta com também grande estrada na reflexão cinematográfica, assim como é Rodrigo de Oliveira, outro pensador que vem construindo uma filmografia ímpar, aqui presente no triste e comovente As horas vulgares e na outra mostra com o rigorosíssimo Eclipse solar. Dirigido por Affonso Uchôa e João Dumans, o premiado Arábia parte da história individual de um trabalhador para, de forma vigorosa e comovente, contar a história de um país.O cinema de Uchôa, inclusive, também vem projetando Contagem e toda uma estética personalíssima para dentro e fora do Brasil. Há o delicioso Sandra espera, de Leonardo Amaral, que assim como Contagem foi para Carlão, é filme que já me conquistou desde os créditos de abertura – Falsa loira, do próprio Carlão, é outro filme de abertura inesquecível. Paula Gaitán, um dos nomes mais luminosos de nosso cinema, está presente com seu retrato personalíssimo e poético da imensa Maria Gladys em Vida. Batguano é exemplar de altíssima cepa do cinema provocativo, desconcertante e ingovernável de Tavinho Teixeira. O petardo Estado itinerante, de Ana Carolina Soares, que recentemente elenquei para o querido Cine Festivais, de Adriano Garrett, como um dos três curtas e médias indesviáveis dos anos 2000/2010 – os outros dois são Cinema contemporâneo, de Felipe André Silva, também presente em outro recorte dessa mostra, e A chuva nos telhados antigos, de Conde. Este último é um filme que merece ser muito mais conhecido e falado, pois é um assombro de beleza e com todo o rigor desse cineasta, que aqui se faz presente também com outro filmaço, Fronteira. A obra cinematográfica de Rafael faz dele um dos grandes cineastas do Brasil e um dos maiores na história do cinema feito em Minas Gerais.
Por fim, a “Maurílio Conversa Mais Filmes” é composto por filmes convidados fora do catálogo da Embaúba, com os já citados Cinema contemporâneo, de Felipe André Silva, e Eclipse solar, de Rodrigo Oliveira. Já destaquei Cinema contemporâneo muitas vezes e para diferentes fins, pois realmente esse filme me impressionou desde o primeiro momento em que o assisti. Destaco sua capacidade de, em cinco minutos, não só abordar um tema difícil e complexo, o abuso sexual infantil, como ainda fazer, a partir de uma imagem estática, o mais puro cinema. Já Eclipse solar é Rodrigo de Oliveira em pleno domínio cinematográfico. A mulher que sou é filme que conta com ótima direção de Nathália Tereza, em elenco iluminado com a arrebatadora Cássia Damasceno e um dos atores-fetiches da Filmes de Plástico, Renato Novais Oliveira. Há também os assombros que são Filme de Domingo, de Lincoln Péricles, e A morte branca do feiticeiro negro, de Rodrigo Ribeiro. Muito já se falou sobre esses dois filmes e muito ainda há de se falar, pois são obras que arrebatam e crescem ainda mais a cada novo encontro com eles. Por fim, Recordações de um presídio de meninos, de Lourival Belém, em que o cineasta revisita seu passado de dor com outros colegas às voltas com os maus-tratos, abusos, violência e abandono. Uma produção de Goiânia e momento luminoso da história do cinema negro.
A Mostra Maurílio Conversa, para a Embaúba, enfim, reúne filmes que vieram antes, durante e depois do surgimento do cinema de Maurílio Martins. Todos eles, penso, sentam à sua e à nossa mesa, seja no Laguna, na sua casa em Contagem, em Marzagão, minha casa eterna, no Mineirinho, bar do baixo centro, ou mesmo nos quatro cantos do mundo em que ele teve o sonho e me contou.