festival rastro
a muito se discutiu até chegarmos à segunda edição do rastro. em meio ao visionamento de obras dissemelhantes e ponderações diversas, essa curadoria buscou costurar inquietações comuns e elaborar a partir do que se apresentou como produção fílmica em um período pandêmico e incerto. pensar que, mais uma vez, a programação online chega ao público através de dispositivos sobre os quais somente quem escolhe assistir tem gerência também dialoga com o fazer curatorial. pensar rastro é pensar as trilhas do olhar.
o audiovisual como ferramenta contracolonial se faz presente nesta edição enquanto processo narrativo e como possibilidade de interpretação histórica de forma racializada abarcando subjetividades secularmente silenciadas. direito à terra, à moradia e a sua ocupação como instrumento de luta política estão presentes desde os curtas videomemória e lupita, por exemplo, passando pelos longas a flecha e a farda, sobradinho e nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa!. nesse recorte de filmes, grupos e lideranças se mobilizam em torno da terra como direito inalienável, que, não raro, lhes é usurpada por agente do próprio estado e do sistema neoliberal.
a memória e o arquivo também se apresentam como linhas de força muito particulares na articulação desse corpo fílmico. poderíamos aludir a dope is death e a pele manchada, que se utilizam de estratégias quase diametralmente opostas nas suas construções narrativas, indo da macro história política de um país à micro história familiar de um indivíduo, mas que encontram na memória uma ferramenta potente de ressignificação da existência e da luta política no movimento negro. a flecha e a farda e sobradinho, por exemplo, também recorrem aos arquivos para ensaiarem uma contranarrativa às versões institucionais de uma nação brasileira construída a fórceps pela ditadura militar.
imagens de lideranças femininas construídas a partir de um retrato documental íntimo são bastante expressivas nas jornadas das protagonistas de lupita e fiding sally. nesses filmes, há um desejo nítido de disrupção com o sistema vigente a partir da organização de pequenas células de resistência contra as forças opressoras do estado. as reverberações desse movimento também podem ser sentidas em filmes como nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa! e sobradinho, que nos apresentam às personagens inesquecíveis de dona pequenita e sueli maxakali.
os filmes exibidos esse ano no rastro também abrem espaço para discussões ligadas ao ritual, ao místico e à ancestralidade. em curtas como plowing the stars e land that rises and descends, que se estruturam em narrativas abertamente opacas e espiralares, o místico e o espiritual se apresentam como estratégias para falar da memória compartilhada de territórios e culturas distintas. o arquivo como materialização da ancestralidade estabelece um novo olhar ao que nos é apresentado.
o cinema é capaz de oferecer ferramentas para nos revisitar e sobretudo para revisitar a história, movimento mais que necessário devido à reprodução incessante de narrativas hegemônicas. enredos divergentes da história única[1] ajudam a recriar os mapas que trouxeram a humanidade até aqui e dá insumos para a construção do que há de vir. cabe a nós decidir o que fazer com essas imagens que nos chegam.
equipe de curadoria
bethania maia, bruno victor, letícia bispo, pedro azevedo, rafaella rezende e renata schelb
[1] https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt