foco daniel nolasco
Geralmente restritos a circuitos de nicho – por imposição de forças moralistas e estigmatizantes -, só esporadicamente filmes que guardam claras relações com a pornografia são integrados às discussões mais amplas do cinema brasileiro. O cinema de Daniel Nolasco é exemplo de um trabalho que tensiona tais barreiras. Assinando a direção de mais de dez títulos e já tendo circulado por diversos festivais, Nolasco apresenta uma trajetória sólida da qual partem reflexões sobre o próprio cinema e a pornografia, permitindo pensar como a associação entre ambos pode subverter imaginários. Seu mergulho no universo de desejo homoerótico desestabiliza códigos de masculinidade, valoriza a expressão performática do prazer e suas nuances entre diferentes paisagens do Brasil – do interior de Goiás, às cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
O programa reúne dois curtas-metragens, Sr. Raposo (Daniel Nolasco, 2017) e O Cavalo de Pedro (Daniel Nolasco, 2023), e um longa-metragem, Mr. Leather (Daniel Nolasco, 2019). Entre os três, nota-se a presença de narração – dispositivo que tanto assume um lugar performático como denota sentidos históricos e políticos a partir da contação erótica. A pergunta pelo que se pode falar, transformar e inventar através do sexo produz em seus filmes uma orientação aberta às formas heterogêneas da fantasia. A presença da dimensão ornamentada do leather, das práticas tensionadoras do BDSM e das referências ao trabalho de Tom Of Finland e Robert Mapplethorpe são exemplos disso. Através de olhares assumidamente fetichistas, Nolasco chama atenção às noções de artifício/artificial e faz disso uma brecha para a experimentação de relações dissidentes entre imagem e erotismo.
Em Sr. Raposo, conhecemos a história de Acácio (Geovaldo Souza), portador do vírus HIV desde 1995. O curta-metragem trabalha justamente com o questionamento de estigmas históricos, aproximando a narração de Acácio a cenas de sexo frontais, dispersas e oníricas. “Basta você ligar a televisão para ver as imagens da minha morte”, ele afirma enquanto o que vemos são imagens suas no mar, desdobramentos de sonhos e corpos heterogêneos transando. Homens jovens, envelhecidos, violentos, musculosos, tatuados, desproporcionais e vulneráveis – formas diversas que reverberam a dimensão material da experiência ambígua de Acácio. Interessante pensar como sua história individual se dilui e se estende a outras pessoas e vozes em cena, em uma dinâmica erótica que emerge mediante o encontro com o outro filmado, que toca, contrapõe e intervém em seu relato.
De tom mais político e debochado, O Cavalo de Pedro joga com o quadro Independência ou Morte (Pedro Américo, 1888) e propõe uma reimaginação do momento da independência do Brasil. Livre adaptação do romance “As Maluquices do Imperador” (Paulo Setúbal, 1927), desdobra suas “fofocas” e provocações à pomposa história oficial da monarquia brasileira. Entram em cena a figura do agroboy sensual – presente em outros trabalhos seus, como Vento Seco (Daniel Nolasco, 2020) -, longos beijos gays em frente a monumentos, anacronismos explícitos, enquadramentos pictóricos, fabulações de uma relação homossexual entre Dom Pedro I e Plácido. A associação entre os deslocamentos humorísticos da “versão HT da história” e a aparição de registros do Museu Nacional em chamas se desdobra em uma postura crítica frente à construção de memória no país, sobretudo no campo das imagens.
Para adentrar o universo leather na cidade de São Paulo, Mr. Leather apresenta uma abordagem documental que articula os artifícios performáticos característicos do cinema de Nolasco com as formas expressivas da comunidade retratada. O filme acompanha os candidatos da nova edição do Mr. Leather Brasil, explora as conversas que envolvem o evento e apresenta uma contextualização histórica da prática no Brasil. Conhecemos um a um: suas referências pessoais, fetiches, roupas de couro favoritas, relações com o BDSM e visões singulares da situação da cena leather brasileira. Encarando a prática abertamente – com destaque para uma exibição pública em follow shot no Minhocão -, extravasa as imagens da fantasia para a concretude da cidade. Além disso, na medida em que abre espaço para os dissensos do movimento aparecerem, desvia de representações totalizantes. A posição crítica e formal de seus filmes se faz intrínseca à maneira que os corpos em cena experimentam prazer: na fricção do couro, no limite do sonho e na disputa histórica.
Barbara Bello
programação
Mr. Leather (Daniel Nolasco, 2019)
Sr. Raposo (Daniel Nolasco, 2017)
O Cavalo de Pedro (Daniel Nolasco, 2023)