FOCO EWERTON BELICO
Na obra de Ewerton Belico, os filmes se apresentam como caminhos abertos para as possibilidades de criação e experimentação. Uma poética do espaço – notadamente, das ruas e esquinas de Belo Horizonte, quase sempre tomadas à noite – ganha protagonismo e dá vazão a um forte desejo de expressar tanto visões críticas de mundo quanto uma aposta em outros estados de mundo, outros regimes de representação e sensibilidade, menos calculados, mais imprevisíveis. O cinema de Ewerton Belico se faz numa intimidade profunda com a madrugada. Seus filmes escutam cartas de amor extraviadas, solidões coletivas. O barulho dos próprios passos na rua vazia, o barulho do silêncio. O som metálico de Exu, a ideia instável de Exu. Observam: o que dizem as janelas sobrepostas, a penumbra dos postes de luz, as festas que emergem do centro à periferia de Belo Horizonte?
Os filmes aqui reunidos – dois curtas e o longa Baixo Centro, co-dirigido com Samuel Marotta e premiado em Tiradentes como Melhor Filme da Mostra Aurora, em 2018, percorrem dissensos e encontros possíveis entre vozes diversas. Abrindo-se a fluxos próprios da experiência urbana e do improviso sonoro, ao mesmo tempo soturnos e lampejantes, tal conjunto de filmes perambula – seja pelas ruas, sons ou palavras – no tempo próprio dos acidentes. Neles, a cidade que parece convergir aos encontros inesperados no centro, faz também o caminho contrário. Espaços limiares, encruzilhados e disjuntivos – coexistindo dentro e fora, centro e periferia, barulho e silêncio, material e imaterial – norteiam o pensamento de uma Belo Horizonte noturna e polifônica.
Entre os lançamentos, em Memória sitiada da noite (2021) há uma madrugada onde se vê a vida posta em suspensão. É, afinal, o horário em que as máquinas costumam parar, em que a maioria dos trabalhadores descansa. No lugar dos movimentos diurnos incessantes, pairam fragmentos perdidos no ar. Vibram os sonhos e as agruras das pessoas? Também as conversas que a rua ouviu e engendrou, guardou dentro de si. A performance de Bárbara Colen e Robert Frank faz passar, contar, tais histórias. Quando a cidade encontra-se vazia, é através deles que tais vozes ressoam. Nos movimentos da palavra e do corpo. Ainda, a sonoridade do filme – nem sempre enunciável – deflagra uma qualidade disjuntiva no estado errático da noite. Esvaziamento impossível em tempos comuns, o filme foi realizado próximo ao período de isolamento social. Ainda que esteja para além de tal circunstância, vale pensar no estado de exceção como algo a partir do qual projeta-se o efeito de estranhamento. Enxerga-se e escuta-se algo familiar em iminência de desaparição, prestes a se tornar outro.
Em Vira a volta que faz o nó (Ewerton Belico, Ricardo Aleixo, Marco Scarassati e Luiz Pretti, 2021) a operação disjuntiva perdura. Imagem e som se habitam e se atritam, sem necessariamente se corresponderem. O filme parte de uma relação coreográfica e musical entre Belico e Luiz Pretti – atrás das câmeras apenas inicialmente -, com o poeta e músico Ricardo Aleixo e o músico Marco Scarassati. A performance poética-musical guarda a duração de um dia, até o cair da noite. Lidando com forças vivas através da improvisação – ou dos acidentes, como afirmam -, partem de um caminho de pensamento sobre Exu: “Exu não é um só […], Exu é inapreensível, incapturável”. E o improviso lida, afinal, com a matéria do inesperado – algo do qual não se pode tomar posse, ideia com a qual se relaciona, sempre instável. No filme, os instrumentos sonoros e visuais são tão diversos quanto pede tal ideia. A câmera, o gravador e a composição da montagem realizada por Luiz Pretti, inclusive. Mesmo que filmado no ambiente doméstico, o curta-metragem relaciona-se também a aspectos advindos de fora: seja na relação de Exu com as ruas e instâncias limiares, ou na própria relação do filme com uma cena belorizontina de música de improviso. Os ambientes internos e externos da casa apresentam-se como espaço aberto – ao imprevisto, à contradição, ao risco.
Por fim, em Baixo Centro, o espaço urbano acolhe uma pesquisa estética e uma proposta de encenação rigorosa, para trazer à cena seres solitários, marginais, os “invisíveis” sociais. Diferenças de classe e raça são colocadas em escrutínio, mas sem alarde, sem esquematismos. O movimento da e na cidade oferece passo e compasso, na articulação das imagens com a trilha sonora, de modo a nos conduzir por uma sucessão de encontros, desencontros, espaços povoados e logo vazios da noite do centro e da periferia de Belo Horizonte. A montagem, bastante sugestiva, encontra seu ritmo pelo que resta nos interstícios, na passagem de um plano a outro. Os corpos se tocam, se afastam, em exercícios de aparição, deriva e desaparição. Pouco a pouco, testemunhamos a rarefação da presença dos corpos, as impossibilidades de dar sequência aos encontros, de firmar pactos coletivos. Cria-se assim, em lugar de uma narrativa teleológica, uma atmosfera de solidão e desamparo, um réquiem para a cidade ameaçada – ou sitiada, como a memória da noite.
(Bárbara Bello e Carla Maia)