foco Guto Parente
Há quem diga que o cerne do trabalho de um autor de cinema já esteja presente desde seu primeiro filme, ainda que de modo incipiente, ou com pouca nitidez. No caso da obra de Guto Parente, a hipótese tem fundamento. Em Cruzamento (2007), co-dirigido por Pedro Diógenes e realizado ainda nos tempos de estudante da Escola de Audiovisual, em Fortaleza, acompanhamos Benjamin na direção de seu carro, dia e noite, enquanto cruza a cidade. Pouco acontece, além da ação de dirigir: um homem se oferece para limpar os vidros, passam alguns pedestres, outros motoristas. O som é mais variado e vívido: ouvimos o rádio, buzinas, motor ligado, acelerador, ventilador portátil, limpadores de parabrisa. A estrutura é simples, como convém a um primeiro exercício de realização. A narrativa é rarefeita em prol de um investimento no ritmo, na cadência dos planos, e na sensorialidade, estimulada pela rica camada sonora. A iminência de sentido exige atenção a detalhes, aparentemente incidentais: a letra da música, a notícia no rádio, os ruídos da estação mal sintonizada, alguma ação que se passa fora do carro e que, apesar de banal, parece estranha. E há a cidade, Fortaleza, espaço de perambulação e travessia, cenário de diversos outros filmes do diretor.
“Cruzamento” foi um exercício, um filme atrelado ao estudo, ao exercício de pensar o cinema e com o cinema. Essa também é característica do cinema de Guto. Sua obra resulta de uma inquieta investigação das possibilidades expressivas da linguagem cinematográfica. De certa maneira, os elementos descritos inicialmente – espaço demarcado e situado, investimento na paisagem sonora, rarefação narrativa em prol de sentidos que surgem de uma espécie de livre associação sensória de elementos formais (imagem/som/montagem) – formam um núcleo de investigação e criação que perpassa, em formas e graus variados, toda a filmografia do diretor aqui reunida. Além deles, cabe notar outro traço bastante presente no trabalho de Guto: a prática de compartilhar a direção e de estabelecer parcerias criativas, equipes que seguirão firmes, filme após filme, com algum revezamento de funções mas com bastante recorrência de nomes. A obra de Guto depende, em larga medida, do reconhecimento dessas parcerias, firmadas desde o coletivo Alumbramento, que ficou em atividade entre 2006 e 2016. A extensão de sua coleção de filmes – feito raro entre os realizadores brasileiros – talvez se explique justamente pela prática do cinema em coletivo, que permite produzir muito, mesmo que com poucos recursos, graças à soma dos esforços e das ideias, movidas por um forte desejo de cinema.
Falávamos do tom de estranheza dado a situações aparentemente cotidianas. É evidente sua inclinação por histórias em que o banal e o extraordinário, o comum e o bizarro, assim como os códigos de gênero – ação, suspense, terror, comédia, melodrama, ficção científica – surgem mesclados, indissociáveis. Nestes muitos “cruzamentos”, supomos, reside o cerne de seu trabalho, observado em Espuma e Osso, co-dirigido pelo protagonista de Cruzamento, Ticiano Monteiro, com seu personagem fantasiado e solitário; no curta Flash Happy Society (2009), com sua sinfonia de flashes que compõem uma cena quase sobrenatural; na poesia queer de Doce Amianto (2013), co-dirigido por Uirá dos Reis; em O clube dos canibais com sua apropriação do terror e do suspense para tratar das violências de classe; na melodia atonal dos amigos da Alumbramento em Os monstros (2011); nas figuras bizarras do bar de Inferninho (2018), co-dirigido por Pedro Diógenes. Mesmo filmes com vocação documental, como Eu, turista ou Um jóquei cearence na Coreia não escapam desse estranhamento do mundo que se dá pelo aguçamento sonoro e visual, como se fosse necessário sintonizar outra frequência para cruzar suas imagens. “O estranho cinema de Guto Parente”, título dado a uma das mostras dedicadas a seus filmes, exige de nós, espectadores, a suspensão da expectativa por realismo ou verossimilhança, em prol de uma investigação daquilo que, no real, resta incompreensível, incrível, fantástico.
Filmes:
Curtas
2007 – Cruzamento (codireção com Pedro Diógenes)
2007 – Espuma e Osso (codireção com Ticiano Monteiro)
2008 – Passos no Silêncio
2009 – Flash Happy Society
2010 – Eu, Turista
2012 – Dizem que os Cães Veem Coisas
2017 – O saco azul
Longas
2010 – Estrada para Ythaca (co-direção com Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti)
2011 – Os Monstros (co-direção com Luiz Pretti, Pedro Diogenes, Ricardo Pretti)
2013 – Doce Amianto (co-direção com Uirá dos Reis)
2014 – A Misteriosa Morte de Pérola (co-direção com Ticiana Augusto Lima)
2016 – O Estranho Caso de Ezequiel
2018 – O Clube dos Canibais
2018 – Inferninho (co-direção com Pedro Diógenes)
2022 – Um jóquei cearense na Coreia