foco Helena Ignez
Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. (Giorgio Agamben)
A trajetória de Helena Ignez atravessa todo o cinema brasileiro, como ela mesma faz questão de sublinhar. Como atriz, ela inicia carreira atuando em filmes do Cinema Novo, bem antes de se tornar estrela do Cinema Marginal, no final da década de 1960 e início da de 1970, em obras dirigidas pelo companheiro Rogério Sganzerla e por Júlio Bressane, de quem foi sócia na lendária produtora Belair. Rebelde extraordinária, sedutora sagaz, mulher de todos: Ignez ocupa, no imaginário cinematográfico brasileiro, posição singular. Graças a sua autenticidade, ousadia e inteligência performática, sem mencionar sua prodigiosa produtividade – é creditada em 39 filmes como atriz e dirige, aproximadamente, um filme a cada dois anos, feito raro no cinema brasileiro, tão exposto a descontinuidades e desvios. Seu filme mais recente, A alegria é a prova dos nove (2023), é seu décimo segundo filme, entre longas, médias e curtas. Foi só depois da morte de Sganzerla, em janeiro de 2004, que se aventurou na direção de seus próprios filmes, já com mais de 60 anos. Em entrevista a Gabriela Rufino Maruno, autora de tese sobre sua obra, ela revela que sentiu necessidade de elaborar o luto, de dar continuidade ao trabalho daquele que sempre a incentivara a dirigir, a expressar-se como autora. Do “baú do Rogério”, conta ela nessa mesma entrevista, saíram materiais de montagem para A miss e o Dinossauro (2005), o roteiro de Luz nas trevas (2010) e outras tantas lembranças, registros de sua história que, na tese de Maruno, formam um “acervo criativo inigualável, com potencial para converter Helena em uma arqueóloga da própria vida”.
É engano, contudo, concluir que sua obra permanece atrelada ao seu passado de atriz, requentando recursos expressivos que experimentou com a turma do cinema novo e do cinema marginal. “O cinema dirigido por Helena Ignez nasce contemporâneo, ainda que sob a franja anárquica estética da Belair. Seus filmes formam um conjunto de tônica experimental que rompe com as tradições e abdica das narrativas fáceis, subvertendo naturalismos, ficcionalizando o documental e explorando o potencial de performance de suas personagens”, escreve Gabriela Rufino Maruno em sua tese de doutorado. A tese de que o cinema de Ignez nasce contemporâneo, defendida por Maruno, tem bastante fundamento, se pensarmos no “contemporâneo”, com Giorgio Agamben, como atribuição de quem se percebe inadequado ao presente e, face a tal inadequação, toma distância para melhor entrever as “trevas do presente”, ampliando sua capacidade de ação e transformação. Nesse sentido, Helena Ignez é uma diretora radicalmente contemporânea e o fato de um de seus filmes mais emblemáticos – a continuação do Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), marco do cinema marginal e moderno brasileiro – receber justamente o título de Luz nas trevas não é nada trivial.
Quem navegar pelo conjunto de filmes reunidos neste Foco Helena Ignez terá a chance de observar este trabalho de escavação das próprias experiências, de reiteração da história pessoal, mas também de reflexão sobre a história coletiva pelas vias de um “cinema afetivo-performativo”. Para seguir a argumentação central da tese de Maruno: o cinema de Ignez solicita ao corpo do espectador respostas corporais e cognitivas que desafiam os lugares comuns da espectatorialidade, conforme recombina práticas performáticas marcadas pela teatralidade, desde a improvisação até o que poderíamos chamar de uma poética do artifício, que envolve procedimentos metalinguísticos, hibridismos entre registros ficcionais e documentais, não-linearidade e provocativas apropriações e invenções simbólicas, com boas doses de ironia e deboche. São estratégias de transgressão de todo e qualquer lugar comum, sem dúvidas experimentadas por Helena ainda na juventude como atriz do cinema marginal, mas reinventadas e atualizadas em seu trabalho como diretora, na maturidade. Helena é agente da história, radicalmente contemporânea porque seus filmes enfrentam as trevas da banalidade, da falta de imaginação e do conservadorismo político e estético de parte do audiovisual brasileiro e da sociedade como um todo – conservadorismo manifesto não apenas na forma do filme, mas também nos modos de composição das equipes profissionais, majoritariamente masculinas – com golpes sensoriais, subjetivos, afetivos. Estejam advertidos que o contato com seus filmes pode provocar sentimentos de inadequação, vertigem, indignação e até mesmo incompreensão, necessários para que possamos, em meio àsa trevas, entrever alguma luz, para abrir caminho à novidade.
Referência:
MARUNO, Gabriela Rufino. Um cinema de afecções e performances contemporâneas: análise dos filmes de Helena Ignez diretora realizados entre 2003 e 2018. Tese de doutorado. Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2022.