foco João Pedro Faro
É difícil falar do cinema de João Pedro Faro sem, já de início, posicioná-lo em relação ao projeto construído pela MBVIDEO, produtora de cinema independente composta por ele, Bruno Lisboa, Miguel Clark e Daniel Brito. O modo de produção arquitetado pela equipe passa por uma articulação sagaz entre o desejo de produzir agora, os instrumentos ao alcance e toda possibilidade inventiva que se possa derivar disso. Para além do jogo de cintura com as condições de realização no Brasil, vale ainda observar relações estabelecidas pela produtora com cinematografias marginais setentistas – a nível formal, estratégico e temático -, próprio de uma cinefilia devoradora, não por acaso interessada em personagens errantes e ficções furiosas. Das imagens de Faro insurgem também a sujeira, o grotesco, o erotismo, a violência e o ruído, como golpes de intensidade crítica.
A programação reúne três longas – Sombra (João Pedro Faro, 2021), Extremo Ocidente (João Pedro Faro, 2022) e Paixão Sinistra (João Pedro Faro, 2023) – e um curta – Os Dias Ateus (João Pedro Faro, 2024) -, conjunto que aponta para paixões narrativas, uma excitação indomável e debochada, destreza com paradoxos – as fricções, os contrastes – e um radicalismo formal ampliado por texturas digitais imperfeitas. As limitações entram no jogo cinematográfico, transformando-se em motes para a ficção. Isso é percebido, por exemplo, através da camcorder utilizada nos quatro filmes, trêmula e produtora de impressões auráticas através de seu zoom perfurante. Compõem o universo dos filmes as literaturas menores, as HQ’s, tanto o cinema clássico norte-americano quanto o exploitation, o frenesi de manchete sensacionalista e a monstruosidade das máscaras.
Em Sombra, longa de estreia da MBVIDEO, há um prolongamento entre tempo e alienação. Dois jovens (Miguel Clark e Daniel Brito) de poucas palavras passam o dia entre o gramado sintético do condomínio de classe média e o quarto escuro ao som de heavy metal; à noite, vagam de corpse paint pelas ruas da cidade. Ruídos sonoros e imagéticos envolvem o filme: a baixa resolução de planos longuíssimos, a trilha sonora anos 80 corrompida e o zoom na lua minguante assombrosa. Se vivem fastidiosos às voltas de muros, na cidade assumem uma espécie de espírito delinquente. Em explosões violentas – na música, na droga, na porrada -, dilaceram toda letargia, dando ensejo a faíscas de prazer. A errância da dupla encontra seu lugar mais expressivo no meio-fio, inseparável da piscina cristalina que os espera.
A imagem do Rio de Janeiro, fixada pela ótica publicitária, reaparece como cenário estranho nos filmes de Faro. Isso é ainda mais agudo em Extremo Ocidente, constituído por ruínas, urubus e fantasmas. No primeiro momento do filme, um jovem soldado (Miguel Clark) habita os esgotos da cidade. Figura solitária, envolta por um rádio que troca incessantemente de faixa, um fuzil, HQ’s, retratos antigos e uma foto erótica lenticular. Ele declara tendências suicidas, mas não tem coragem para efetivar o gesto. Então, resignado, sobe às superfícies. As ruas são tomadas por resquícios sonoros de guerra e ares atemporais, delirantes. Há ainda um amigo (Bruno Lisboa), fazendo “churrasco de cashorro” e bebendo chá de fita no topo de um edifício. Alterado e vulnerável à noite, o soldado sucumbe ao destino e cai nas mãos fatais do Canibau (Daniel Brito): vermelhos cintilam na tela.
Não à toa, o final convulsivo de Extremo Ocidente antecede o próximo longa de Faro, Paixão Sinistra. Do filme de guerra ao filme de crime, cresce o número de personagens e suas máscaras. Dessa vez, as ruas da cidade estão cheias e por elas vagam o filho de um dos chefes do Esquadrão da Morte (Miguel Clark), M (Cosmo Salisme) e toda ficção. Transeuntes e trabalhadores entram em cena, interagindo com a câmera e as personagens caricatas – especialmente a de Miguel, vestindo um terninho branco dissonante do entorno. Essa abertura à instabilidade da rua aprofunda a relação entre a trama (um emaranhado de violências lacunares) e a cidade, estendida tanto a objetos cartográficos quanto às narrações em voice-over de poética mortal-descritiva. Enquanto M tortura um assassino (Antônio Ferraz) em seu apartamento fechado, avançam as ações do crime e os passos do homem de preto (Estevão Nogueira) em direção às consequências de tanta barbárie.
Os Dias Ateus também segue a temática atmosférica dos causos criminais. Sua figura central, um escritor frustrado e isolado, tem a atenção capturada por um livro intitulado “Manual de Zoofilia” e descobre que o escritor, Wilson Bueno, foi assassinado em seu aniversário de 61 anos por um garoto de programa. Após perder metade de seu crânio em um acidente e ter a face deformada, o escritor passa a enfrentar maiores dificuldades para dar seguimento a seus ofícios. Com a face envolvida por gazes e desprovida de expressão, resta-lhe apenas registrar pensamentos em um gravador. A poesia tipográfica do livro, aliada aos flertes mortíferos do escritor, intensificam a formulação lírica de sua revolta. Furioso e solitário, se engrandece na enunciação livre de prazeres mórbidos e na irreverência às “chefias culturais”. A ambiguidade das figuras deslocadas – coração das ficções de Faro -, é intrínseca às formas rigorosamente barulhentas de seus filmes, compondo entre elas desorganizações complexas capazes de revirar cinemas e cidades.
(Barbara Bello)
Instagram de João Pedro Faro: @inimigosinvisiveis
Títulos:
Extremo ocidente (João Pedro Faro, 2022)
Sombra (João Pedro Faro, 2021)