foco Lincoln Péricles
Falta ao cinema brasileiro um cinema pedreiro. Daqueles que na quebrada ajuda a levantar a casa do vizinho e a sua própria. Daquele que sabe ser peça, sabe ser tijolo, consciente de tudo o que circunda essa função. Cinema que saiba ser função.
Lincoln Péricles, em Por um cinema pedreiro*
Capão Redondo, periferia de São Paulo: com as imagens, relações, sonoridades e histórias que ali acontecem se constrói o cinema de Lincoln Péricles (LK). Seu extenso trabalho perpassa diversas áreas de atuação – direção, montagem, roteiro, produção, pesquisa, escrita e formação -, nas quais a relação imbricada com o território costura o senso de comunidade e de criação experimental e poética. Sempre em movimento – não por acaso, são recorrentes as imagens de trens, ônibus, pessoas em deslocamento – o cinema de Lincoln impressiona por sua autenticidade e originalidade. A exploração pelo trabalho, a exclusão, assim como a indignação, a consciência de classe e a defesa da coletividade são alguns dos temas que pulsam entre seus planos cuidadosamente imperfeitos, apenas para ressaltar o senso de urgência do que vemos e ouvimos. A revista Cahiers du Cinema destaca seu trabalho como “um cinema longe do imaginário ligado às favelas, que inventa sua própria forma, áspera e necessariamente imperfeita, entre intervenção e arquivo visual do bairro”.
O programa com foco no diretor reúne sete filmes: o longa Filme de aborto (2015), os curtas Meu amigo Pedro MIXTAPE (2024), Mutirão: o filme (2022), Ruim é ter que trabalhar (2015) e Entrevista com as coisas (2016), além de outros dois filmes já presentes no catálogo da Embaúba Play, Filme de domingo (2021) e Aluguel: o filme (2015).
Em Ruim é ter que trabalhar, embora a direção seja assinada por Lincoln, o que se destaca é a criação conjunta com Adriano Araújo, presente também em outros títulos reunidos na programação. O filme acompanha-o em seus fluxos diários – nas caminhadas pela cidade, fumando seus cigarros, no busão e no trem lotado -, sendo algumas imagens filmadas por Lincoln e outras fotografadas por Adriano. Vemos ambientes fechados, fios e equipamentos de proteção que compõem seu trabalho. O filme é de 2015, um ano após a Copa do Mundo ter sido sediada no Brasil, e o relato é de quem trabalhou para ela acontecer: escutamos Adriano contar das condições precárias, de má remuneração e da revolta diante da contradição que é o empreendimento do país para receber o gringo às custas da exploração do trabalhador brasileiro.
Quem construiu a Copa? Quem construiu esse filme? Quem constrói a cidade e faz ela funcionar? Suas casas? A essas perguntas, Mutirão: o filme responde com a seriedade da brincadeira. Num jogo de montagem entre os arquivos fotográficos do movimento popular Povo em Ação, essencial na construção da quebrada do Capão Redondo, e a narração curiosa de uma criança que hoje vive lá, Maria Eduarda Isaú, conta-se a história do território. “Lincoln fica me pedindo para contar história, daqui a pouco vou inventar tudo… já inventei que é minha tia e minha avó, mas se você pensar bem, pode ser”, diz Maria Eduarda. Também numa lida direta com arquivos e moradia e pensando histórias que se revelam a partir de tais materialidades, Meu amigo Pedro MIXTAPE articula o arquivo pessoal de um antigo celular de Lincoln, contendo registros da estação de metrô do Capão Redondo e de outras pessoas, com registros atuais dos mesmos lugares e de sua própria casa, agora reformada com o dinheiro advindo da trajetória de trabalho com cinema.
Entrevista com as coisas é seu filme mais enigmático. Realizado em 2015, ele se organiza como uma composição de signos e objetos que, ao mesmo tempo que surgem fragmentados, comunicam algo do nosso tempo: a virtualização da experiência na voz da inteligência artificial, a materialidade do comunicado sobre pena por desacato e das grades de janela, a aridez do ambiente de trabalho, a simbologia do Cristo crucificado ao fim do corredor e a textura da voz de Odetta cantando “Another man done gone” constroem uma atmosfera distópica que, pela densidade gerada através dos procedimentos de montagem, articula um estado de iminência explosiva como sugere diretamente a ilustração presente no filme.
Filme de aborto mobiliza reflexões sobre exploração do trabalho, gravidez interrompida e questões de gênero através de uma série de procedimentos cinematográficos, sobretudo no campo sonoro do filme. Novamente, temos um filme opaco, que oscila entre planos de longa duração e sequências de cortes rápidos, combinando registro documental e ficcional com materiais de arquivo, a exemplo da cena de Chaplin tentando entrar em casa. Num “regime de impermanentes traições”, como propõe Juliano Gomes, Filme de Aborto contradiz expectativas a todo instante, provoca estranhamento e nos instiga a refletir sobre os modos de representação da opressão, seja a de gênero, seja a de classe, para além do mimetismo, em favor de uma singular experiência das formas.
* Publicado no dossiê “O cine-sample de Lincoln Péricles”, na Revista Descompasso. Disponível em: https://revistadescompasso.com/editorial-dossie-o-cine-sample-de- lincoln-pericles/