Foco Maria Clara Escobar
Quem assistir aos quatro filmes de Escobar, desde seu primeiro longa, “Os dias com ele”, até “Desterro”, seu filme mais recente, passando pelos curtas “Onde habito” e “Passeio de família”, vai se deparar com histórias e personagens marcadas por uma sensação de não pertencer, ou não caber bem no mundo. Uma estranha familiaridade é construída filme a filme: há um pai em exílio, um casal em ruína e uma casa que queima, uma menina em passeio tentando entender seu lugar na família e no mundo, pessoas isoladas em suas próprias casas. A exploração do espaço doméstico surge articulada a contextos sociais e políticos opressores, desafiadores para os indivíduos que precisam entender como construir suas singularidades frente a forças coletivas alienantes, que dificultam o encontro – com o outro, consigo, com o mundo.
A ideia de estranheza está relacionada, em nosso argumento, com a ideia de unheimlich cunhada por Freud – sua melhor tradução talvez não seja “estranho”, mas o “infamiliar”. Trata-se de algo que, sendo muito íntimo, conhecido, provoca sensações inquietantes de angústia, de desconhecimento, ou mesmo de medo e ameaça. O encontro com seu pai, em Os dias com ele, é exemplar, neste sentido – quanto mais ela tenta se aproximar ou conhecer a figura que se exilou durante a ditadura militar, mais ela se dá conta de quão desconhecida para ela é essa figura, seu próprio pai. Em Desterro, a casa aparentemente confortável torna-se espaço ameaçador, ambiente de suspense, como se algo muito grave estivesse prestes a acontecer: uma criança pode se afogar na piscina, alguém pode (e vai) partir, morrer. Em Passeio de família, o parque de diversões não parece nada divertido, também inquieta, enquanto a filha caçula parece buscar uma outra direção para seu olhar. E por fim, em Onde habito, relatos de mulheres durante a pandemia são exercícios de auto ficcionalização que traduzem o estranho sentimento de que “o futuro nunca existiu”.
Cabe notar que tal sentimento de estranheza surge, em larga medida, não tematizado mas construído formalmente, via linguagem de cinema. Pode ser uma ambiência sonora (os estranhos ruídos que ouvimos logo no primeiro plano de Passeio de família), um recurso de cenografia (filmar o pai através de obstáculos, dos objetos espalhados pela casa que impedem obter uma imagem inteira, desimpedida em Os dias com ele), um gesto de direção de atores consciente e evidente no modo de declamar o diálogo ou o monólogo, sem nada naturalizar, sem pretensões de realismo, recurso bastante marcante em Desterro, ou um plano intruso, como os gansos que grasnam interrompendo, pela montagem, os fluxos de pensamento das mulheres em Onde habito. A obra reunida da autora aponta para uma desnaturalização da linguagem cinematográfica, e, com ela, de qualquer interpretação ou leitura de mundo que não suspeite dos lugares comuns e das verdades estabelecidas.
(Carla Maia)