foco Michelline Helena e Amanda Pontes
As mudanças inesperadas – obras do acaso e destino, por bem e por mal – são motes narrativos frutíferos. Os cinemas afeitos à contingência operam aberturas às surpresas, podendo revelar através delas uma qualidade instável na matéria cotidiana. O efeito disso diante do familiar vivifica-se na formulação de perguntas: o que muda a partir de um encontro? Que caminhos imprevisíveis surgem de uma conversa, um gesto, uma troca que ninguém previu? Conduzidas por dúvidas, as personagens dos filmes de Michelline Helena e Amanda Pontes encontram-se frequentemente diante de acontecimentos catalisadores de mudanças. A pandemia, um peixe de estimação e até mesmo um bebê alteram subitamente suas rotas, convocando-as a lidar com o imprevisto e a formar novos vínculos. Por entre trajetórias solitárias e suas descobertas, os filmes refletem uma necessidade movente de reinvenção. Ao mesmo tempo, falam de relações familiares e raízes – às vezes ásperas, distantes ou aconchegantes -, de modo que os passos dados pelas personagens mundo afora também convocam e transformam as relações com suas origens.
Em Do que se faz de conta (Michelline Helena e Amanda Pontes, 2016) um projecionista de cinema encontra uma bebê abandonada na sala após uma sessão e adota-a. Gilda cresce ao lado de suas latas de película e projetores, envolta pelos filmes em preto e branco e suas trilhas sonoras particulares. Apesar de apresentar um vínculo de proximidade com o pai, a personagem ainda transparece um ar de deslocamento. A vemos caminhar por ruas noturnas vazias, observando imagens em outdoors ou flutuando no mundo das ideias durante o trabalho – tudo isso, em silêncio e sozinha (quase, não fossem as imagens de cinema de seu pai reverberando). Já em Oceano (Michelline Helena e Amanda Pontes, 2018), em plena rodoviária, lugar de movimento e passagem, uma menina deixa para trás um peixe. Operando como disparador narrativo, a mulher ao seu lado é incumbida – a princípio, contra sua vontade – a cuidar do pequeno aquário. Nos trajetos de volta à casa da mãe, atravessa uma série de percalços e encontros imprevistos. Sol a pino e estrada de terra adentro, a personagem vai vinculando-se ao peixinho como quem se entrega, não sem resistência, aos convites pueris. Prepara-se, assim, para reencontrar o silêncio rígido de sua mãe.
Em Introdução aos estudos oníricos (Amanda Pontes, 2020) segue-se engendrando o inesperado. Aqui, enquanto motivo para realização: em meio à pandemia de coronavírus, realiza-se um curta-metragem sobre um vírus cujo principal sintoma são sonhos que obedecem à forma estética de filmes de ficção. Os chamados neurohackers (ou a própria cineasta, de outro ponto de vista) acessam as imagens desses sonhos, revelando suas tendências para uma variabilidade de gêneros cinematográficos: suspense, pós-apocalíptico, musicais etc. Há ainda os que não sonham com nada, geralmente advindos de um grupo com alto poder aquisitivo. Em Pequenas considerações sobre o espaço-tempo (Michelline Helena e Amanda Pontes, 2020) o desvio de rota pandêmico desdobra-se na reelaboração das relações familiares. Mãe e filha que haviam distanciado-se em virtude de conflitos políticos, voltam a conversar uma com a outra através de videochamadas. Isso motiva a revisita a fotografias antigas, acompanhadas de uma narração fabulatória que expressa num só tempo o distanciamento e o desejo de reaproximação.
Por último, em Topofilia (Michelline Helena e Amanda Pontes, 2016), acompanhamos a história de Ana, Rafa, Shaula e Virna – mulheres que encontram-se, por razões variadas, distantes de seu estado de origem: Fortaleza. O documentário costura suas histórias a partir de relatos e vídeos gravados por elas mesmas, fazendo com que as trajetórias pessoais dialoguem entre si. Se por um lado encontram-se envoltas pela solidão e pela sensação dividida decorrente dos trânsitos, por outro refletem sobre a importância das escolhas que levaram-nas a estar longe, buscando ainda inventar seus próprios rumos. Como uma delas arremata: agora que tenho minhas raízes aqui e sigo com as minhas raízes lá, tenho que me acostumar com a ideia de que nunca estarei completa; nem quando eu estiver lá, porque eu tenho aqui, nem quando eu estiver aqui porque eu tenho lá. O filme nos leva a pensar nessa raiz como um elemento desterrado, em movimento. O cinema de contingências de Michelline Helena e Amanda Pontes reúne, assim, um conjunto de histórias e narrativas sensíveis às reinvenções que só podem ser feitas no meio do caminho.
programação
2020 – Introdução aos Estudos Oníricos
2020 –Pequenas Consideraçoes sobre o Espaço-tempo
2018 – Oceano
2017 – Topofilia
2015 – Do que se Faz de Conta