foco Ricardo Alves Jr.
Para assistir ao cinema de Ricardo Alves Jr., é preciso ganhar intimidade com a duração. Desde seu primeiro curta, Material bruto (2006) até o mais recente Aragem (2022), o diretor trabalha, com rigor, modalidades temporais e espaciais que exigem atenção, paciência e sensibilidade. Atenção para notar o mais leve tremor de pálpebras (Tremor, 2013); paciência para acompanhar a silenciosa deambulação dos corpos (Permanências, 2010; Convite para jantar com o camarada Stalin, 2007; Elon não acredita na morte, 2016), a lenta demolição dos espaços (Russa, co-direção de João Salaviza, 2018), a cadência dos monólogos (Vaga Carne, co-direção de Grace Passô, 2019; Coisas úteis e agradáveis, co-direção de Germano Melo, 2020); sensibilidade para articular tudo isso, galope e tremor, silêncio e história, erotismo e violência.
Outra forte articulação estrutura sua obra: podemos dizer que Ricardo é um cineasta do teatro, ou um dramaturgista do cinema. O diretor explora e amplia as zonas fronteiriças entre as duas artes, extraindo de uma e de outra seus elementos lapidares – gesto e performance, olhar e voz, luz e ação – em exercícios criativos que fazem da representação algo não de todo apreensível, aberto a significações, mas antes de tudo aos enigmas. O que aconteceu com a esposa de Elon? O que provoca o mal estar da Mulher Náusea pelos corredores? Que sonhos se perderam junto às ruínas em Aleixo, no Porto? A vitória virá aos operários paralisados? Stalin chegará para jantar, afinal?
Entre muitas questões e variações, o cinema de Ricardo Alves Jr. deixa-se atrair pelos interstícios, recusa qualquer totalização. A opacidade das personagens é traço recorrente, assim como as deambulações por espaços não exatamente identificados – mesmo a tão familiar Belo Horizonte, cidade natal do diretor, parece uma cidade estranha em seus filmes. Tal premissa, em que as figuras e espaços retratados têm sempre contornos incertos e tendências labirínticas, faz que seus filmes sejam tomados por efeitos de multiplicação. Assim, a relação entre pessoas e ambientes transforma-se em dispositivos cênicos e cinematográficos que permitem transpor posições subjetivas a questões coletivas. Os silêncios dos moradores de um conjunto habitacional em Permanências, as histórias de um bairro em ruínas em Russa, a voz e a matéria em estado de fricção e desalinho em Vaga Carne, a revolta entre os ruídos incessantes das máquinas da fábrica em Vitória ou os depoimentos perturbadores dos artistas em Quem tem medo? (co-direção de Dellani Lima e Henrique Zanoni) são alguns dos elementos que participam dessa transposição.
Nas conjugações de luz, espaço e corpo, não apenas um tom político e existencial se adivinha, mas um vasto espaço poético pode tomar forma. Não há naturalismo. Há reafirmação, cena após cena, do jogo que intensifica a relação entre obra e espectador, uma aposta radical nessa relação – tão preciosa para o cinema e para o teatro – como catalisadora dos sentidos possíveis para cada história narrada. Não por acaso, a frontalidade do corpo em cena, tal qual num palco teatral, é recurso recorrente em seu trabalho, acrescido da possibilidade, dada pelos recursos tipicamente cinematográficos do enquadramento e da montagem, de observar mais de perto os detalhes, as leves variações. Ricardo não guia nem direciona: ele convida e provoca, com toda sutileza, sem abrir concessões ao óbvio.
Aragem e Coisas úteis e agradáveis estreiam na plataforma somando-se a outros nove trabalhos de Ricardo como diretor (há ainda, vale lembrar, filmes do catálogo em que ele participa como produtor, como Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, de João Salaviza e Renée Nader Messora, ou colabora no roteiro, como em Pinta, de Jorge Alencar). Ambos realizados durante a pandemia, os curtas renovam as articulações entre cinema e teatro na obra do diretor.
Coisas úteis e agradáveis parte de livre inspiração em “As Cartas de Amabed” (séc. XVIII), de Voltaire. Entre ambientes escuros e planos fechados, constrói a atmosfera de confinamento a partir da qual escutamos Ravi (Germano Melo) – um homem hindu e brâmane, levado à força da Índia para a Itália por colonizadores europeus – contar sua história. A composição pictórica entre ele e os ambientes em penumbra reverbera sua posição diante das violências do mundo ocidental, prolongando os sentidos do texto narrado. A teatralidade, revelada especialmente na densa declamação do ator e diretor Germano Melo, confere ao filme um formalismo narrativo próprio.
Aragem, por sua vez, resulta da parceria de Ricardo com o grupo teatral Atrás do Pano em sua primeira experiência audiovisual. Neste filme, a intimidade com a duração da qual falávamos inicialmente se manifesta na maneira como a câmera acompanha o cotidiano da personagem vivida pela atriz Myriam Nacif. Ela vive sozinha e próxima ao mar. Dela sabemos pouco: que se recupera de alguma doença, que tem uma filha, uma neta pequena, que parece ter um amigo. A ela, importa arar os dias, reencontrar um ritmo próprio, sussurrar histórias de baleias, acompanhar uma criança, mirar o horizonte. Respirar, controlar a ansiedade, contar de um a dez. Não seriam ações que importam a todos nós? A passagem da história individual para a dimensão coletiva, gesto tão definidor do cinema de Ricardo, lembra-nos de atentar ao que narram os corpos, suas relações com o espaço em que vivem e o tempo próprio que inventam para si.
Carla Maia e Bárbara Bello