MOSTRA EMBAÚBA CINEMA E POLÍTICA
A política da forma, a forma da política
O cinema na política e a política no cinema: dois caminhos às vezes conflitantes, outras combinantes. A política pode estar presente na temática, na forma, nas relações expostas, na abordagem dos filmes; pode estar assumida como ponto de partida ou surgir no processo; pode se aprofundar nas possibilidades da linguagem ou ser rede de informações. A questão é: qualquer filme é político, intencionalmente ou não, porque a política não é uma escolha, e sim um estado de vida e convívio.
Os filmes da Mostra Embaúba Cinema e Política compreendem o sentido do “fazer política” como esse algo orgânico da vivência, para além dos conchavos de gabinete ou reuniões de portas fechadas. É uma produção audiovisual contemporânea brasileira que olha para a política sob diversos aspectos e possibilidades, que a compreende como elemento constitutivo da cidadania do indivíduo e do coletivo, que acredita nas batalhas diárias da micro e da macropolítica no máximo das tentativas por vidas mais dignas.
É ainda o entendimento da própria Embaúba Filmes na tarefa de distribuir e exibir um cinema brasileiro que pense a política em sentido amplo, humano, diverso e democrático – e que contemple, dentro dos filmes, também as contradições, desafios e provocações que um ambiente político saudável e plural deve proporcionar. Num momento em que pairam no ar ameaças antidemocráticas, intolerância com as diferenças e cerceamento a expressões culturais, nos parece fundamental incentivar a circulação de filmes que ajudam a refletir o Brasil que vivemos e a pensar um Brasil que queremos.
A mostra é composta de sete títulos que captam urgências do ambiente social e político brasileiro e expõem na tela tanto suas temáticas quanto as formas de chegar nelas.
“Estamos te Esperando em Casa” (Cecília da Fonte e Marcelo Pedroso, 2021) é o mais próximo de uma vivência coletiva recente ao documentar o cotidiano de Poliana, terapeuta ocupacional num hospital do Recife que, no ápice de internações ocasionadas pela COVID-19, faz o que pode para conectar pessoas isoladas em UTIs a seus entes queridos através de videochamadas de celular. O filme adota essencialmente o já tradicional quadro vertical do visor dos aparelhos e mistura o ponto de vista de Poliana ao dos doentes para transmitir o impacto e sofrimento de vítimas da pandemia num momento em que mais de 400 mil mortes eram contabilizadas (hoje esse número está na faixa das quase 700 mil). Entre o dia a dia mais ordinário da profissional e seu corre-corre pelos corredores e quartos de hospital, o média-metragem coloca o espectador por dentro da angústia de uma sequência de acontecimentos cuja responsabilização oficial ainda está por ser definida, ainda que todos saibamos de que instância vem.
Outros dois documentários na mostra olham para o passado, trazem a política manifestadas de maneiras distintas e nos permitem refletir o presente. Num deles, a política do gesto: Reinaldo, craque do Atlético-MG nos anos 1970, desafia a ditadura militar ao erguer o punho direito ao empatar o jogo contra a Suécia na Copa do Mundo de 1978. A imagem, até hoje considerada um ícone da resistência aos desmandos antidemocráticos do regime militar brasileiro, está em “Lutar Lutar Lutar” (Sérgio Borges e Helvécio Marins Jr, 2021). Num contraponto a 2022 em que jogadores da Seleção Brasileira fazem propaganda para candidatos de extrema direita, resgatar a consciência de um profissional que se preocupava com os rumos de violência de um governo autoritário décadas atrás é duplamente um gesto político – do filme e da importância de Reinaldo.
O outro documentário sobre o passado que ainda nos atinge nos dias de hoje é “Brizolão” (Jéferson, 2021). O filme resgata a história e o impacto dos CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública), implantados no Rio de Janeiro durante os governos de Leonel Brizola (1983-1987 / 1991-1994), tendo projeto educacional desenvolvido pelo sociólogo Darcy Ribeiro e arquitetura das escolas a cargo de Oscar Niemeyer. Entre depoimentos de ex-professoras dos CIEPs, historiadores e políticos analisando a importância da iniciativa, o longa-metragem também resgata imagens de arquivo (incluindo várias entrevistas de Brizola) que permitem um olhar amplo sobre o processo, de sua ascensão ao sucateamento posterior e o resgate em anos recentes, ainda que sem a mesma atenção do Estado. “O político tem que olhar para o futuro, para as novas gerações”, declama Brizola.
“Quem Tem Medo?” (Ricardo Alves Jr, Henrique Zanoni e Dellani Lima, 2022) é um documentário que registra os inúmeros casos de censura a artistas brasileiros em anos recentes, período no qual a extrema direita ampliou espaço político e social e, com isso, foi para cima de manifestações culturais que considerassem passíveis de proibição. Casos de grande repercussão envolvendo nomes como Renata Carvalho, Wagner Schwartz, Maikon K, José Neto Barbosa e as peças “Caranguejo Overdrive” (Aquela Cia de Teatro) e “RES PUBLICA 2023” (A Motosserra Perfumada) são abordados.
No caso de “Entre Nós Talvez Estejam Multidões” (Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito), a campanha eleitoral de 2018 é o pano de fundo do cotidiano dos moradores da Ocupação Eliana Silva, na região de Belo Horizonte, marcada por um dia a dia de tensões e possibilidades de confronto com forças oficiais. A ascensão da extrema direita ao governo é o fantasma a aumentar os assombros do local, captado pela câmera em suas complexidades humanas, nas esperanças do futuro e na resistência aos constantes obstáculos impostos pelas injustiças vindas principalmente do Estado.
A ficção documentária está na mostra com dois títulos que performam questões políticas do mundo contemporâneo a partir de referências do teatro. “Pão e Gente” (Renan Rovida, 2021) se baseia no dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1848-1956) para tratar da fome e do desemprego no Brasil e mescla encenação e improvisação de um grupo de atores às margens de uma sociedade cada vez mais desigual.
Por sua vez, “Os Grandes Vulcões” (Fernando Kinas e Thiago B. Mendonça, 2022) tem a atriz Fernanda Azevedo, do grupo Coletivo Comum, recriando um monólogo a partir de texto de outro dramaturgo, o inglês Harold Pinter (1930-2008). Entre idas e vindas no teatro documentário de alta voltagem e imagens de arquivo de filmes ou registros históricos, Fernanda literalmente desenha a ingerência dos EUA na geopolítica mundial ao longo do século 20.
(Marcelo Miranda)