BEIRA – Festival de Cinema de Porto Velho
Um festival de cinema pode ser muitas coisas. O BEIRA – Festival de Cinema de Porto Velho quer ser desses encontros onde o cinema se faz experiência de olhar e de escuta das múltiplas vidas do Brasil contemporâneo, impulsionando a expansão de ideias e novos saberes, apontando e afirmando sua vocação para mobilizar reflexão crítica, maquinar desejos e conjurar esperança. Os festivais, como o cinema, podem ser um território fértil de encontro com diferentes pensamentos e mundos. Possibilidade esta que a pequena equipe do BEIRA se agarra com mãos e coração, convidando e interpelando seu público rondoniense a reconhecer e beirar outros cinemas, aproximando-se de filmes diferentes daqueles normatizados ao qual temos acesso em centros comerciais. Os 46 filmes exibidos no BEIRA são obras que desorganizam, experimentam, encantam, provocam pensamentos e transformam o cinema.
Nesta primeira edição do festival realizada com apoio da lei Aldir Blanc de Rondônia, trazemos uma programação que quer participar de um poderoso processo de desconstrução em curso em nosso país e no sul global, movido pelo ímpeto inadiável de descolonizar o cinema e as instituições, os olhares, ouvidos, ruas, ideias, memórias (e com isso, aos poucos, o passado e os futuros). As seis mostras compondo a programação do festival exploram o cinema brasileiro contemporâneo a partir de um olhar posicionado, que se abre da beira do Rio Madeira para os diversos cantos do país, trazendo tanto filmes realizados em terras rondonienses quanto obras que se criaram longe das nossas águas, mas que produzem imagens e pensamentos em confluência com as vidas e as lutas locais. Reunidos na composição curatorial do festival, à beira uns dos outros, os filmes se interpelam e se entrecruzam, engajando conversas poderosas entre eles. Um “maravilhoso emaranhado” (1)
emerge dos encontros entre filmes, entre um filme e o mundo, entre um filme e o lugar de onde o vemos. Dessa beira do Brasil, é possível ver, dentro e fora dos filmes, os equívocos do país e a maneira como eles são praticados em Rondônia, vigorosamente.
O festival acontece de 18 a 23 de maio através do site do BEIRA. As exibições dos filmes que acontecem aqui na Embaúba Play e são acompanhadas de atividades ao vivo e gravadas — debates, conferências, mesas de conversas — transmitidas no canal YouTube do festival. A MasterClass de Dácia Ibiapiana também estará disponível no canal YouTube do Beira, após realização em ambiente Zoom com participantes inscritos.
Um festejo de abertura reunindo cineastas e pesquisadores rondonienses no ambiente virtual marcará a estreia do BEIRA na noite de 18 de maio. O encontro será em torno da obra de Pilar de Zayas Bernanos e Lídio Sohn, casal de vídeastas que atuou na cidade de Ariquemes, cuja amplitude dos filmes e legado da obra para as artes fílmicas rondonienses ainda estão para ser totalmente reconhecidos. A sessão de abertura Homenagem Pilar de Zayas Bernanos e Lídio Sohn – vídeastas em ação no Vale do Jamary é um convite para (re)conhecer o deslumbre e potencial crítico das imagens e sons compondo dois trabalhos cruciais da obra do casal de videastas: Povo da Ribeira (1989) e Os requeiros (1998).
A Mostra Filmes Rondonienses, única mostra com convocatória do festival, apresentará oito filmes de realizadores rondonienses reunidos pelos curadores Lúcia Monteiro e Juliano Araújo em torno de dois gestos principais: o trabalho de memória e a vontade de experimentação. Além da exibição dos filmes, a mostra integra debate gravado com os realizadores: Allyne Pinheiro, Carlos Reis, Eva da Silva Alves, Joesér Alvarez, Kaline Leigue e Maria Luiza Ferreira Santos, e mediação de Lúcia Monteiro e Juliano Araújo. “Filmes rondonienses” é a única mostra competitiva do festival. O público do Beira poderá votar no site do festival e o filme vencedor desse jury popular receberá um prêmio no valor de R$ 1 mil.
A composição da Mostra Brasil: vários cantos se dá em meio ao desafio e ao desejo de acompanhar uma produção dinâmica e contundente testemunhada em vários lugares do país. Composta por quatro longas e sete curtas-metragens, realizados entre os anos de 2019 e 2021, vários cantos do país emergem nesta mostra, “nuançados nas curvas de uma criatividade própria, genuína, densa, provocadora e, sobretudo, necessária, em tempos tão adversos”, como escreveu Érico Oliveira. Para fortalecer o pensamento com os filmes, a mostra contempla a série de conversas gravadas “Brasil: retomadas – território, história, imaginação”, em que o curador Érico Oliveira conversa com Aiano Bemfica (Entre nós talvez estejam multidões), Janaina Wagner (Curupira e a máquina do destino), Roberto Romero e Carolina Canguçu (Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa terra é nossa!). A constelação fílmica de “Brasil: vários cantos” foi cuidadosamente elaborada por Angélica Menezes, Érico Oliveira e Simone Norberto.
Em Mostra Histórias de Família trazemos um conjunto de filmes brasileiros recentes que tornam sensível a experiência familiar. Os filmes passeiam por muitos lugares em que as “histórias de família” se constituem e se reinventam, sugerindo que é sempre possível reencontrar a ideia de família de outro lugar. Composta por 11 filmes a mostra integra também a mesa de conversa “Fazer cinema com e em família”, com a participação de Maria Clara Escobar, Kaline Leigue, Fábio Rodrigo e Marcos Yoshi, e mediação de Kênia Freitas. Esta mostra resulta de uma experiência de curadoria envolvendo André Novais, Kênia Freitas e Naara Fontinele.
Beira convida: forumdoc.bh é uma mostra especial com 6 filmes, 5 longas e 1 curta-metragem, pensada por Júnia Torres, organizadora e uma das idealizadoras do forumdoc.bh, Festival do Filme Documentário e Etnográfico – Fórum de Antropologia e Cinema. Com a proposta de dar a ver filmes e a pensar com eles, a intenção é de “fortalecer a aliança entre o cinema e os povos indígenas por meio da difusão e reflexão de títulos emblemáticos que nos colocam face a formas especiais de se construir essa aliança”, na palavras de Júnia Torres. A mostra é acompanhada da mesa de conversa “Alianças entre o cinema e os povos indígenas”, com a participação de John Nara, Márcia Mura, Vincent Carelli e mediação de Ruben Caixeta.
A Mostra Dácia Ibiapina, com curadoria de Cláudia Mesquita, é uma pequena retrospectiva da obra desta importante realizadora piauiense radicada em Brasília, reconhecida por seu cinema articulado aos movimentos sociais e engajado na combinação das lutas inadiáveis de nosso tempo. A mostra contempla 4 filmes de Dácia Ibiapina e a Masterclass “O cinema documentário como lugar de memória e de luta dos movimentos sociais”, com mediação de Cláudia Mesquita.
Tendo a Aventura como tema norteador de suas histórias, a Mostra Beirinha, com curadoria de Angélica Menezes e Naara Fontinele, exibirá três curtas-metragens: Mutirão: O filme, de Lincoln Péricles (2022, São Paulo), Rabiola, de Thiago Briglia (2021, Roraima) e Ewé de Òsányin: o segredo das folhas, de Pâmela Peregrino (2021, Bahia).
O festival contempla também uma Sessão Especial do novo filme da realizadora rondoniense Emanuela Palma, o longa-metragem Mestre Sirso – quando o mundo é silêncio a vibração é mestre. Neste documentário sobre esperança e resiliência, Manu Palma retraça a experiência de vida do Mestre de Capoeira, Sirso, que perdeu a audição quando criança e encontrou a fuga de uma vida silenciosa no contato, sonoro e corporal, com as vibrações da Capoeira.
Além das atividades compondo as mostras já mencionadas, a programação do festival integra mais 3 encontros que prolongam as reflexões com, a partir e pelo cinema. Em reverberação aos filmes da sessão de abertura, teremos o debate “Futuros de Rondônia” em que estarão presentes Márcia Mura, Ricardo Gilson, Lediane Felzke, e mediação de Luciana Borges. A conferência “Por uma história dos Cinemas Amazônicos”, mediada por Lúcia Monteiro, é dedicada a conhecer as pesquisas mais recentes dos pesquisadores Juliano Araújo (UNIR) e Sávio Stoco (UFPA) e marca o lançamento dos livros O cinema de Silvino Santos (1918-1922) e a representação amazônica, história, arte e sociedade (Concultura, 2021) de Sávio Stoco e Documentário em Rondônia: realizadores, filmes e contextos de produção (Edições Motriz, 2022) de Juliano Araújo. Encerramos o festival com o encontro ao vivo O que vem à luz quando nasce um festival de cinema? Diálogo de encerramento com Amaranta Cesar, e mediação de Naara Fontinele, com a partipação de Angélica Menezes, Juliano Araújo, Érico Oliveira e Simone Noberto.
O BEIRA surge do desejo de expandir as possibilidades do cinema em Rondônia e de criar, em Porto Velho, mais oportunidades para ver juntos filmes e se relacionar com eles. O festival nasce se deparando com o desafio de constituir uma comunidade de cinema no ambiente virtual, num momento em que a pandemia anuncia uma despedida e que as pessoas reencontram os espaços públicos e a alegria de estar juntos. Apostamos na possibilidade de que a vibração da vida lá fora esteja à beira do ambiente virtual do festival. A passagem entre os mundos está aberta (2) . Boas-vindas!
(1) Tomo emprestado essa bela formulação de Lina Bo Bardi e agradeço Gustavo Jardim por me colocar em contato com ela ao comentar o filme de Isaac Julien, Um maravilhoso emaranhado (2019). Em entrevista, Bo Bardi disse: “O tempo linear é uma invenção do Ocidente, o tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim.”
(2) Retomo aqui um trecho de uma frase de Clarisse Alvarenga, ao comentar uma cena de primeiro contato em Os Arara de Andrea Tonacci: “A passagem entre os mundos está aberta, ainda que o equívoco permaneça como elemento fundante”. Em ALVARENGA, Clarisse, Da cena do contato ao inacabamento da história: Os últimos isolados (1967-1999), Corumbiara (1986-2009) e Os Arara (1980-),Salvador, Edufba, 2017, p.256.