embaúba play convida Eduardo Valente
OS INFINITOS MUNDOS DA FICÇÃO
SOB O RISCO DA FICÇÃO
O que existe por trás do gesto de propor o recorte de um conjunto de filmes sob um mesmo guarda-chuva conceitual? Quando recebi o convite da Embaúba Play para esta “carta branca” nunca me escaparam as diversas dimensões desta pergunta. De fato, vindo bastante recentemente do processo de realizar a mostra “Cinema brasileiro, anos 2010: 10 olhares”, tal exercício estava bastante próximo dos meus pensamentos, ainda que naquela ocasião eu mesmo não tenha proposto uma seleção de filmes a partir do meu próprio olhar. Posso dizer, portanto, que estava bastante consciente de algumas das potências e de muitos dos perigos que existem ao se buscar de alguma forma resumir um universo tão amplo quanto o da produção cinematográfica brasileira recente em pouco mais do que um punhado de filmes (ainda que, aqui, eu tenha tido tanto o alívio de poder propor quase o dobro de títulos do que limitava meus colegas na mostra acima citada; quanto a libertação de não precisar repisar as escolhas já feitas pelos dez curadores daquela mostra, assim como as realizadas pelos outros quatro que já propuseram recortes aqui na inauguração da plataforma da Embaúba).
Parti, inicialmente, de um pressuposto: trabalhar exclusivamente com filmes de cineastas que estrearam na direção já no século 21, em especial mas não exclusivamente nos últimos dez a quinze anos. Se inegavelmente isso me pareceu uma maneira de me permitir criar um primeiro “recorte dentro do recorte”, o que já facilitava em parte a minha missão, acima de tudo me interessava o aspecto geracional que isso cria: não apenas lidar com filmes de determinado período no tempo, mas também de pessoas que partilhem de alguma forma uma certa percepção histórica de sua experiência do mundo (e particularmente do Brasil e do cinema brasileiro). Isso permitiria, ainda assim, apresentar uma multiplicidade de momentos de carreiras, pois deste período pude escolher obras que antecedem e antecipam nos curtas preocupações e estéticas já desenvolvidas depois em mais de um longa (como nos casos de Marco Dutra, Juliana Rojas, Gabriela Amaral Almeida, Anita Rocha da Silveira), primeiros longas de carreiras hoje já mais avançadas (como Felipe Bragança, Marina Meliande ou Rodrigo Aragão), obras mais recentes de carreiras numerosas anteriormente (como Caetano Gotardo, Petrus Cariry ou Leo Mouramateus) até realizadores que por enquanto só têm curtas na suas realizações (como Sabrina Fidalgo, Henrique Arruda, Fábio Leal) – e todo tipo de experiência intermediária entre essas, nos outros casos. Neste novo século e dentre realizadores com proximidade etária razoável, as experiências ainda assim são muito variadas, e os filmes aqui exibidos representam passos bem distintos para cada um(a).
A partir desta decisão de recorte geracional, a questão seguinte que me preocupava é uma que me parece recorrente neste tipo de proposta: como escolher um conjunto de filmes que, ao serem colocados lado a lado ou reunidos a partir de uma ideia, não terminasse anulando ou ao menos escondendo as individualidades sob o manto de uma pretensa unidade que pudesse estar apenas nos meus olhos? Este é um problema que não é pequeno neste tipo de aproximação, pois dependendo do caminho escolhido os filmes começam a se assemelhar muito mais do que seria o desejável, pois nossa atenção como espectadores parece sempre instada a partir de uma certa uniformidade a que os filmes em si, individualmente, nunca aspiraram ao serem realizados. Então, me interessou buscar um recorte que permitisse revelar algo diferente quando pensado no seu conjunto mas que, ao mesmo tempo, a meu ver permitisse, ainda assim, que cada filme mantivesse a singularidade de suas propostas e da experiência no do espectador no contato com elas.
Isso porque essa ideia de singularidade, de fato, para mim é decisiva no contato com os filmes que escolhi, pois para mim uma das marcas distintivas deles é como apresentam, um a um, marcas inconfundíveis de identidades próprias (autoral, mas também existencial mesmo). Sim, pois se a aposta de cada um deles no poder da ficção é sem dúvida um ponto em comum que permite essa associação, por outro lado é notável o quanto essa aposta se dá através de múltiplas escolhas absolutamente distintas. Pode-se dizer, talvez, que assim como a ideia de uma verdade única e indiscutível não passa de uma ilusão, da mesma forma as maneiras de fantasiar, de urdir ficções e construir universos com regras de lógica e causalidade absolutamente únicos e distintos é igualmente caleidoscópica. Dessa maneira, creio que não há a menor hipótese de que um espectador hipotético assista esses filmes de maneira a confundi-los ou a não perceber que aquilo que serve de pressuposto (estético, narrativo ou dramatúrgico) em um será construído de forma absolutamente distinta no outro.
A verdade, portanto, é que dentro deste amplo universo de dezesseis filmes convivem muitos mundos. O que haveria afinal de comum entre a alegoria desbragada de Alfazema ou O Barco; a “realidade aumentada” de A Alegria ou Os Mortos Vivos; a primazia da palavra e dos corpos em Seus Ossos Seus Olhos ou O Porteiro do Dia; o lirismo desbragado de Quinze ou Teobaldo Morto, Romeu Exilado; a fantasia asfixiante e libertária de A Seita ou Os Últimos Românticos do Mundo; a estranheza existencial de As Sombras ou Náufragos; a subversão dos modelos hegemônicos em Mangue Negro ou Retirada para um Coração Bruto; os jogos de narração de António Um Dois Três ou Doce Amianto (apenas para propor alguns possíveis dípticos, dentro de si distintos)? Acredito que as repetições serão muito menos notáveis nesses inúmeros caminhos possíveis do que as particularidades – da mesma forma que os ecos da história do cinema com o qual nos encontramos ao passear por estes filmes nos levam a encontros tão múltiplos como os que teríamos ao assistirmos Manoel de Oliveira, Romero, Fassbinder, Ruiz, Erice, Buñuel, Wertmuller, Apichatpong ou Jia; ou ainda, para ficarmos no cinema brasileiro, Reichenbach, Khoury, Ana Carolina, Bressane, Djalma Limongi ou Guilherme de Almeida Prado, para lembrarmos de alguns apenas.
Uma vez feita a ressalva necessária quanto a esta particularidade essencial de cada filme do programa, o que essa aproximação de conjunto busca explicitar é algo que tem mais a ver com uma visão mais macro do cinema contemporâneo. Porque tem sido muito repetitiva uma afirmação de que a grande marca deste cinema contemporâneo, e talvez especialmente o brasileiro, seria a sua re-criação dos conceitos do realismo naturalista a partir de uma determinada forma de se aproximar deste, onde especialmente se tem como gesto original borrar as fronteiras (de resto nunca plenamente claras) entre os registros do documental e da ficção. Embora esta discussão obviamente não seja despropositada, o que me parece claro quando oferecemos uma coleção tão ampla, variada e numerosa (inclusive por ser ainda parcial – os títulos poderiam ser muitos outros) de filmes que abraçam sem qualquer pudor ou receio a mais desbragada ficção é que essa aproximação generalizante esconde os interesses parciais do seu gesto metonímico. Ao escolher uma determinada parte e buscar confundi-la com o todo, o que resulta é um tipo de apagamento histórico que, embora no momento em que é feito pareça no mínimo inocente e quiçá ineficaz, ao longo do tempo pode adquirir efeitos bem mais daninhos. É por caminhos como este, por exemplo, que muito se confunde os anos 60 do cinema brasileiro com o Cinema Novo, quando este compunha no máximo em torno de 20% da produção da época – cabendo assim aos outros filmes, uma numerosa maioria, um estranho papel de exceção, quando não de esquecimento.
Até por isso, é mais que importante reforçar que a crença nos poderes da ficção não foi nos últimos anos exclusividade destes filmes ou realizadores escolhidos. Sem termos escolhido um recorte geracional, por exemplo, poderíamos facilmente ter trazido para cá filmes recentes de nomes como Domingos Oliveira, Paulo Cesar Saraceni, Ricardo Miranda, Julio Bressane ou Ana Carolina, apenas para citarmos alguns; da mesma forma, outros recortes ou condições de disponibilidade para exibição online poderiam facilmente nos ter feito adicionar Adirley Queiroz, Kleber Mendonça Filho, Glenda Nicácio e Ary Rosa, entre tantos e tantos outros nomes desta mesma e das próximas gerações. O principal é perceber que a ficção no cinema brasileiro vai bem, obrigado: respira cheia de força, e entendendo que os caminhos para o encantamento pelo cinema são inúmeros, sem com isso deixar de conseguir refletir ou iluminar aspectos mais ou menos escondidos da nossa realidade. Pois frente à ilusão do real, muitos ainda preferem acreditar mesmo é na realidade da ilusão.
Eduardo Valente
longas
A ALEGRIA, Felipe Bragança/Marina Meliande
A SEITA, André Antônio
ANTONIO UM DOIS TRÊS, Leonardo Mouramateus
DOCE AMIANTO, Guto Parente & Uirá Reis
MANGUE NEGRO, Rodrigo Aragão
O BARCO, Petrus Cariry
SEUS OSSOS SEUS OLHOS, Caetano Gotardo
TEOBALDO MORTO ROMEU EXILADO, Rodrigo de Oliveira
curtas
ALFAZEMA, Sabrina Fidalgo
AS SOMBRAS, Juliana Rojas & Marco Dutra
NÁUFRAGOS, Gabriela Amaral Almeida e Matheus Rocha
OS MORTOS VIVOS, Anita Rocha da Silveira
OS ÚLTIMOS ROMÂNTICOS DO MUNDO, Henrique Arruda
O PORTEIRO DO DIA, Fábio Leal
QUINZE, Maurilio Martins
RETIRADA PARA UM CORAÇÃO BRUTO, Marco Antonio Pereira