Sete anos, sete textos, ainda em maio
Por isso ser contemporâneo é, antes de tudo,
uma questão de coragem: porque significa ser capaz
não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época,
mas também de perceber nesse escuro uma luz
que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós.
(Giorgio Agamben, “O que é o contemporâneo?”)
Antes que maio acabe, a Embaúba Play apresenta Sete anos em Maio (2019), média metragem de Affonso Uchôa, completando sua filmografia principal na plataforma (ficou de fora, como diretor, apenas o curta Ou a noite incompleta, de 2006, coassinado com três colegas dos tempos de graduação). No média, somos apresentados a Rafael dos Santos Rocha, ou melhor, tomamos conhecimento de um episódio de sua vida, tão violento quanto decisivo – após ser torturado por oito policiais, ele desaparece para retornar após muitos anos. “A transmissão dessa experiência traumática move o filme, que desdobra, em cada uma de suas três partes, tentativas de elaborá-la”, explica Cláudia Mesquita, autora de um dos sete textos que indicamos junto a este programa, num esforço de apresentar uma breve mas consistente fortuna crítica e analítica dedicada ao cinema de Uchôa.
Interessa ler os textos depois de assistir a Sete Anos em Maio em conjunto com os trabalhos anteriores do diretor – destacadamente, A vizinhança do tigre (2014) e Arábia (2017, co-dirigido por João Dumans) – para observar a força do que supomos ser o ponto de sustentação de seu cinema: um desejo genuíno de construção de cenas com alguns de seus amigos e vizinhos, jovens negros da periferia, mais especificamente do bairro Nacional, em Contagem. Tal desejo de construção (ou de mise-en-scène) implica duas premissas, comuns a esses três filmes: primeiro, romper com o naturalismo ou a verossimilhança, tão recorrentes em obras que denunciam a violência contra a população negra e pobre no Brasil, em favor das vias híbridas da ficção; segundo, fazer com que esta via ficcional possa derivar não exclusivamente do desejo daquele que filma, num exercício de imposição criativa bastante familiar ao campo da direção cinematográfica, mas também do desejo de quem é filmado, num jogo em que a invenção é partilhada.
A força assombrosa das obras parece vir da constatação de que os personagens, companheiros de Uchôa, desejaram tanto (ou mais?) criar algo a partir de suas experiências violentas e trágicas, a partir dos traumas. O diretor não “deu oportunidade”, não “deu voz” a seus personagens, em gesto assistencialista que mantém as luzes e o mérito na boa consciência branca – eles tomaram a cena de assalto, inventando e invertendo o jogo. Isso não é pouca coisa, se considerarmos que parte da estratégia da necropolítica consiste justamente em negar ou calar nos corpos o desejo, a condição desejante que funda a experiência subjetiva.
Destacamos o trabalho de Uchôa porque reconhecemos, nele, enorme relevância para o cinema brasileiro contemporâneo. Sem jamais abrir mão do que “o próprio mundo suscita”, como explica o diretor, trata-se de lançar mão da imaginação como “uma resposta à atrocidade cotidiana”. A imaginação, contudo, não é individual, ou mesmo “autoral”, arriscamos supor. Sem negar o talento do diretor, nem ignorar os traços de estilo visíveis no cotejo das obras, sustentamos a ideia de que a maior habilidade de Uchôa está em fazer da imaginação uma tarefa coletiva, necessariamente política. É assim que, após ouvir a história de Rafael, ele não se limita a registrá-la como numa entrevista, mas propõe sua reescrita, colaborando nesta tarefa. É assim que o vivido se faz imaginado, em boa medida roteirizado, até poder ser declamado na sequência mais longa de Sete anos em Maio: o monólogo/diálogo de Rafael à beira da fogueira, sequência ensaiada e gravada em aproximadamente cinquenta tentativas, como conta o diretor em entrevista (haja desejo de filme, de ambos os lados da câmera, para repetir o take cinquenta vezes!) O resultado é um dos mais pungentes testemunhos da violência e da opressão policial que o cinema brasileiro já produziu, em que o trabalho do testemunho e o da encenação, embaralhados, expandem o alcance da história.
Breve fortuna crítica:
A periferia reimaginada: Uma conversa com Affonso Uchôa – por Mateus Araújo e Maria Chiaretti – https://www.aim.org.pt/ojs/index.php/revista/article/view/677
Sete anos em maio: entre a solidão do sobrevivente e a expansão do trauma (sobre filme de Affonso Uchôa) – por Cláudia Mesquita https://www.academia.edu/44833373/Sete_anos_em_maio_entre_a_solid%C3%A3o_do_sobrevivente_e_a_expans%C3%A3o_do_trauma_sobre_filme_de_Affonso_Uch%C3%B4a_
Arábia: um Brasil profundo – por Bernardo Soares Pereira https://ojs.sites.ufsc.br/index.php/rebela/article/view/3955
Quando o cinema se faz vizinho – por Érico Oliveira de Araújo Lima https://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/125849
Na vizinhança do tigre: lá onde a vida é prisioneira – por César Guimarães https://ecopos.emnuvens.com.br/eco_pos/article/view/12491
Sete Anos em Maio (2019), de Affonso Uchôa – por Revista Rocinante
https://cinerocinante.com/2021/08/09/sete-anos-em-maio-2019-de-affonso-uchoa/
O trauma, a fala – por Calac Nogueira em Revista Cinética
https://revistacinetica.com.br/nova/sete-anos-em-maio-calac/