apresentação
1a MOSTRA EMBAÚBA PLAY – APRESENTAÇÃO
A 1a Mostra Embaúba Play foi concebida como uma mostra inaugural da Embaúba Play, uma plataforma especializada em cinema brasileiro contemporâneo. Ela foi viabilizada por meio da Lei Aldir Blanc/ Governo de Minas Gerais.
Pensamos a mostra como um cartão de visitas da Embaúba Play. Ela apresenta um recorte de filmes que aponta alguns dos caminhos que a plataforma pretende seguir.
A programação se divide em seis blocos: pré-estreias e lançamentos da distribuidora Embaúba Filmes (empresa responsável pelo projeto); a mostra 10+15 – Pulsões de um cinema brasileiro, que apresenta uma seleção de filmes brasileiros produzidos na última década e outras quatro mostras temáticas, propostas por curadores convidados.
A participação destes curadores foi fundamental para a diversificação dos olhares e viabilizou programações que de alguma forma se complementam, apontando para diversas linhas de força do cinema brasileiro (não deixem de conferir os textos de apresentação destas mostras, escritos por seus curadores, logo abaixo).
A mostra acontece num momento terrível vivido por nosso país, em que somos assolados não apenas por uma crise sanitária sem precedentes, mas também por um (des)governo que além de contribuir para o agravamento da crise, também coloca em xeque muitos dos avanços democráticos recentes do país, incluindo aqueles que viabilizaram a pujança do cinema brasileiro, a ser conferida nesta programação.
O cinema brasileiro se mostra cada vez mais importante como uma arte que pode ser transformadora, estimulando a reflexão sobre a vida, sobre o país e o mundo. Num momento de desesperança, de muita tristeza e dor, os filmes se tornam um refúgio e também um grito, colocam o dedo na ferida, fazem rir, chorar e sonhar. Que por meio deles possamos nos encontrar e ganhar forças para seguir na batalha por um Brasil melhor, mais fraterno e mais justo, onde a produção e o consumo da arte não sejam privilégios de alguns, mas façam, cada vez mais, parte do cotidiano de todas, todos e todes.
PRÉ-ESTREIAS E LANÇAMENTOS DA EMBAÚBA FILMES
Nesta programação poderão ser conferidos títulos distribuídos pela Embaúba Filmes (empresa responsável pelo projeto da Embaúba Play), que ainda não tiveram lançamento comercial, incluindo dois longas inéditos que, para a nossa alegria, terão sua primeira exibição na mostra. São 10 filmes, sendo que cada um deles ficará disponível por 3 dias.
ORGIA OU O CINEMA QUE DEU CRIA (curadoria: Victor Guimarães)
Em julho de 1970, auge dos anos de chumbo, João Silvério Trevisan e sua turma singravam a pé um terreno ermo nos arredores de São Paulo com sua procissão carnavalesca feita de restolhos da civilização brasileira regurgitados em grunhidos, movimentos erráticos e blasfêmias visuais em luz natural. Orgia ou O homem que deu cria: experimento radical, aventura suicida, deboche antropofágico, antissíntese das forças de liberação desse cinema que se chamou marginal, do lixo ou de invenção.
Esta mostra não é uma cartografia, nem uma árvore genealógica, nem uma declaração de princípios. É uma tentativa de reconhecer pelo cheiro onde é que foi parar aquela energia orgiástica, desesperada e incendiária, de tentar vasculhar sua possível ressurgência no cinema brasileiro recente. Dispersa e fragmentária, ela renasce hoje nos muitos cantos do país – da periferia paulistana ao interior cearense, de Minas Gerais à Paraíba – e tem perfume de colônia barata, vômito, sexo, chorume e merda. Tem cores vibrantes e texturas corrompidas, frases novas ditas aos berros e poemas antigos sussurrados, ruídos eletrônicos e estertores altissonantes, carnes várias e em profusão.
A utopia cinematográfica gestada ali na virada dos sessenta para os setenta e abortada prematuramente pela ditadura – a de fato ou a do bom gosto – ressurge hoje na tomada das ruas pelo acontecimento grupal e corpóreo de Ossos; nos urros guturais de Bom Dia Carlos; nas expropriações visuais de Aluguel – O Filme; nos ruídos fétidos de Remixcracho; nas explosões de plástico de Waleska Molotov; nas baixíssimas resoluções de Os anos 3000 eram feitos de lixo; na elegância decadente de Batguano; nas monstruosidades fabulosas de Canto dos Ossos; nas vísceras digitais de Rodson ou (Onde o Sol Não tem Dó); na montação incendiária de Antes da Encanteria.
Num momento em que o país se converteu num amontoado de clichês visuais onde o grotesco impera como nunca dantes, chafurdar nesses filmes é uma maneira de encontrar um resto de desordem que seja capaz de desafiar o caos convertido em norma. Uma vez mais, é chegada a hora do carnaval no inferno.
TESTEMUNHAR, FABULAR, EXISTIR – MODULAÇÕES DE UM QUILOMBOCINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO (curadoria: Tatiana Carvalho Costa)
A historiadora Maria Beatriz Nascimento nos ensina que quilombo é “uma possibilidade nos dias da destruição”. Olhando para nosso hoje, poderíamos, rapidamente, nomear esses “dias da destruição” como o nosso agora pandêmico em todas as dimensões dos horrores que ele nos escancara. Entretanto, se observarmos com mais vagar o que nos conta a história deste país, deste mundo de uma centralidade epistêmica que irradia do norte global, compreendemos que a destruição é um sempre-agora para quem é reconhecido como o “outro” do autodenominado “sujeito universal”. O que pode o Cinema neste contexto? O que pode este lugar “outro” das imagens neste mundo em que ainda se crê num “universal”?
Os “dias da destruição” deste nosso tempo sempre-agora também são dias de transformação. Testemunhamos, nas últimas décadas, ao aumento da presença de pessoas negras em diversas instâncias sociais e culturais, inclusive no Cinema. Essa presença se manifesta como um aquilombamento contemporâneo, uma prática de “quilombismo” – para lembrarmos Abdias do Nascimento – numa ação política emancipatória e que inclui, entre outros, o trabalho com as imagens. Um conjunto direta ou indiretamente interconectado de pessoas negras passa, com o Cinema, a realizar testemunhos, fabulações, escrituras e reescritas da história coletiva, de vivências contemporâneas e de elaborações de futuro. Este pequeno conjunto de curtas-metragens selecionados aqui é um recorte deste fenômeno e condensa formas de modulações da existência negra com e no Cinema no Brasil dos anos recentes, numa vigorosa multiplicidade de abordagens e poéticas.
TAMBÉM SOMOS RASCUNHOS (curadoria: Ewerton Belico)
Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto.
J.-L. Borges
Das várias metamorfoses pelas quais a produção audiovisual brasileira passou ao longo das últimas décadas – que são indissociáveis tanto da mudança tecnológica em grande escala, com a migração generalizada para o vídeo digital, e ainda da emergência de políticas públicas que permitiram um grande aumento da produção em baixo orçamento – uma delas foi emergência de um novo campo biográfico. Um conjunto de produções, em metragens variadas, que por um lado retomavam uma prática documental tradicional – construção de retratos de personagens os mais diversos – com um renovado impulso reflexivo, no qual os instrumentos da própria produção biográfica passam ao primeiro plano, implicando na forma final o olhar, o gesto e as vidas daqueles e daquelas que se debruçaram sobre as trajetórias expostas. Dimensão essa que como engendra uma espécie de espaço intermediária, no qual o retrato de si se embaralha no esboço para um possível retrato de outrem: não biografia, mas biografemas[1]: um olhar voltado ao fragmento e à dispersão; biografias em estado precário, e eterna construção; prenhes de atenção ao detalhe, rascunhos sempre rasurados, em relações que implicam mutuamente quem retrata e quem é retratado. Se o retrato é desde sempre uma das características duráveis da produção documental, emergem nas últimas duas décadas de produção brasileira um conjunto singular de filmes, com trajetórias insuspeitas, que recolocam em questão, a partir da dinâmica subjetiva as fissuras da desigualdade, do esquecimento e da violência que continuamente retornam em nossa formação social. Também somos rascunhos partilha com os filmes, algo de seu dispositivo: é uma coleção parcial, algo idiossincrática, rascunho que pode engendrar recombinações diversas possíveis.
[1] Se eu fosse um escritor, e morto, como gostaria que minha vida fosse reduzida, pelos cuidados de um biógrafo amigável e casual, a alguns detalhes, alguns gostos, algumas inflexões, discursos: “biografemas”, de quem a distinção e a mobilidade poderiam viajar além de todo destino e chegar a tocar, como os átomos epicuristas, alguns corpos futuros, prometidos à mesma dispersão. BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola. Paris, Seuil, 1989. P.: 14.
FLUIDEZ DA FORMA NO CINEMA INDÍGENA (curadoria: Júnia Torres)
Quem tem o poder de acessar e construir a elaboração sensível do mundo? Essa é a pergunta que os cinemas indígenas desafiam por meio de filmes que surgem – e se insurgem – como afirmação de outras perspectivas, outros modos de existência e relação com os demais seres no cosmos. Os cinemas indígenas são plurais e diversos como são os coletivos, povos e artistas que os realizam e, para além da apropriação da linguagem, ao longo de mais de três décadas de experiências dos povos originários com os aparatos de imagens em movimento no Brasil, percebemos a criação, ou a invenção de um lugar para o audiovisual em suas matrizes culturais diversas. Em Yvy Pyte – Coração da Terra (Guaiviry), os realizadores Kaiowá nos apresentam em uma sequência única do pôr do sol, o cocar de Nhanderú, o demiurgo. Nos ensinam que em seu cinema, os espíritos participam da montagem, na medida em que os xamãs – consultados pelos realizadores após o visionamento coletivo do material – por sua vez os consultam (aos espíritos Nhanderu e Nhandesy) para saber se determinados planos ou sequências devem ou não permanecer acessíveis ao espectador. Nos filmes maxakali ou xavante, aqui partilhados, somos transportados para o contexto ritual – tudo se torna ritual – e o invisível toma parte da forma mesma do filme.
Como menciona Ailton Krenak, tal demarcação das telas significa uma ocupação de territórios de construção de sentido pelos cineastas indígenas. Sentidos e sensibilidades que demarcam formas diferenciadas e diferenciantes em muitos dos filmes que realizam. É uma parcela desse outro cinema que a mostra Fluidez da forma no cinema indígena apresenta, propondo um recorte de obras onde justamente essa associação a traços culturais específicos se incorpora à forma dos filmes, tendo uma implicação na transformação da linguagem no cinema em geral e no documentário em particular. “O pensamento indígena ocupa a linguagem cinematográfica, deslocando-a a seu modo; a linguagem cinematográfica é desafiada a aproximar-se de elementos culturais nunca antes por ela figurados.” [1]
[1] Ribeiro, Daniel e Torres, Júnia em: https://www.buala.org/pt/afroscreen/entre-o-visivel-e-o-invisivel-cinema-indigena-de-auto-representacao
10+15 – PULSÕES DE UM CINEMA BRASILEIRO (curadoria: Daniel Queiroz)
10+15 – PULSÕES DE UM CINEMA BRASILEIRO (curadoria: Daniel Queiroz)
Esta mostra reúne 10 longas e 15 curtas produzidos na última década (mais precisamente de 2010 a 2019) que são muito distintos entre si. Eles não foram reunidos a partir de um recorte temático ou estilístico. Foram escolhas muito pessoais, numa tentativa de se fazer uma breve retrospectiva do cinema brasileiro neste período, com plena consciência das limitações desse exercício, que é sempre muito subjetivo.
Definidos os filmes, olhando para o conjunto e tentando entender o que eles teriam em comum, a palavra que pareceu melhor representá-los foi “pulsão”. Cada uma dessas obras, tem um “impulso energético” muito próprio, o que estaria ligado ao significado dessa termo pela psicanálise. Mas pensando num sentido mais concreto, a relação pode ser feita com a corporeidade: o pulso que pulsa forte, o sangue que corre nas veias, que mantém a vida. Essa mostra aponta para a vitalidade do cinema brasileiro contemporâneo, ou melhor, “de um” cinema, pois esse cinema não é uno, muito pelo contrário, são muitos.
Temos a tradição, a modernidade, o tropicalismo; a linguagem clássica e sua implosão; o cinema de gênero, o cinema direto, o cinema de invenção; o flerte com a poesia e com a prosa, a transgressão; o documentário, a ficção e as obras que embaralham esses conceitos e nos lembram que essas definições pouco importam.
Esta mostra indica caminhos que a plataforma Embaúba Play quer seguir. Não se busca filmes de consenso, desconfiamos daquilo que agrada a todos, embora por vezes possamos pensar: mas como pode alguém não gostar desse filme? Sabemos a resposta, que gosto não se discute, que é algo muito relativo e, afinal, é preciso gostar de um filme? Talvez não, as experiências mais distintas podem ser muito válidas e, o caminho, aquilo que realmente importa. Fica o convite para a viagem, com 25 sugestões de rotas!