A MEMÓRIA É UMA TRAMA DO UNIVERSO
A memória corresponde aos processos que o cérebro humano executa para adquirir, armazenar, reter e posteriormente recuperar informações. É uma capacidade essencial para a compreensão do passado, do presente e do futuro e, dessa forma, nos tornar quem somos. Entre as formas materiais da memória, o cinema, manifestação artística relativamente recente na história humana, é uma das mais celebradas e constitui um valioso patrimônio. O título que nomeia esse programa de filmes procura expressar a ideia de memória enquanto construção coletiva e dinâmica, como rede de acontecimentos e experiências que se conectam de forma ampla, para além da dimensão individual, intenção que proponho com as obras aqui agrupadas.
Uma das principais missões dos arquivos audiovisuais talvez seja essa: assegurar a integridade da materialidade dessa memória audiovisual a longo prazo para que novas conexões sejam possíveis, em qualquer época. Desafio gigantesco no caso do Brasil, tanto pela ausência de políticas públicas para a preservação quanto pela falta de conscientização acerca de sua importância. Um exemplo disso, que não posso deixar de mencionar, é a crise enfrentada pela Cinemateca Brasileira, uma das maiores e mais importantes instituições da América Latina, fechada desde agosto de 2020 e acometida por um incêndio que destruiu parte do acervo de uma de suas unidades em 29 de julho deste ano. O desmonte da cultura é generalizado e parece ter especial predileção pelo setor audiovisual, porém, é importante ressaltar que as dificuldades de uma área historicamente fragilizada como a de preservação são ainda maiores.
Minha trajetória como profissional de preservação audiovisual se confunde com minha atuação como curadora, iniciada nos idos de 2002 no Cachaça Cinema Clube, onde pérolas do cinema brasileiro eram garimpadas e (re)exibidas com grande entusiasmo. Sigo buscando conciliar curadoria e preservação, e quando fui convidada a propor um conjunto de filmes para Embaúba Play, procurei incorporar em meu recorte obras que abordassem as múltiplas dimensões da memória e da utilização de materiais de arquivo. Os 20 filmes reunidos, 5 longas, 4 médias e 11 curtas, trabalham o tema a partir de diferentes perspectivas e em direções variadas, compondo um panorama instigante do manejo da memória em seus aspectos históricos, políticos, sociais, afetivos e materiais. Os títulos, realizados entre 2005 e 2021, também cobrem o final da transição entre a utilização da película cinematográfica e a adoção majoritária da tecnologia digital nos meios de produção. Inclusive, a digitalização dos acervos facilitou o acesso e fez com que a circulação e a utilização de materiais de arquivo aumentassem significativamente nos últimos anos.
Por uma feliz coincidência, é justamente no mês de outubro, no dia 27, que se celebra o Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual. A fim de comemorar a data, além dos 20 títulos, incluí no programa uma seleção dos filmes domésticos do desenhista, gravurista, pintor e também cineasta, Mario Carneiro, exibidos durante a Mostra Internacional de Filmes Domésticos, realizada no início de 2021. Considerado um dos maiores fotógrafos do Cinema Novo, Mario ganhou uma câmera Paillard Bolex 16 mm em 1953, em seu aniversário de 23 anos, e nunca mais parou de filmar. Esta seleção reúne filmes amadores rodados no início dos anos 1950 e registros feitos entre a família e os amigos. A junção de filmes brasileiros contemporâneos e obras realizadas em outro contexto histórico possibilita conexões inesperadas e comprova que o cinema brasileiro, apesar de tudo, tem uma longa trajetória.
Diante da barbárie da conjuntura brasileira atual, celebrar a memória audiovisual é um ato de resistência e de exaltação da vida. É necessário lembrar como chegamos até aqui. Os filmes reunidos neste programa, cada um com sua particularidade, oferecem reflexões e caminhos múltiplos que se cruzam, demonstrando que a memória pode ser tecida coletivamente na construção de uma trama de inúmeras possibilidades.
Débora Butruce
Filmes
A miss e o dinossauro – bastidores da Belair, de Helena Ignez, 2005
Cartola, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, 2007
O diário de Sintra, de Paula Gaitán, 2007
Minami em Close-Up a boca em revista, de Thiago Mendonça, 2008
Pacific, de Marcelo Pedroso, 2009
Cat Effekt, de Distruktor (Gustavo Jahn e Melissa Dullius), 2011
Ovos de dinossauro na sala de estar, de Rafael Urban, 2011
Retratos de Identificação, de Anita Leandro, 2014
Satan Satie ou memórias de um amnésico, de Lucas Parente e Juruna Mallon, 2015
A grávida da Cinemateca, de Christian Saghaard, 2016
Maldição tropical, de Luísa Marques, Darks Miranda, 2016
Pastor Cláudio, de Beth Formaggini, 2017
Extratos, Sinai Sganzerla, 2019
Tudo que é apertado rasga, de Fábio Rodrigues, 2019
O que há em ti, de Carlos Adriano, 2020
A morte branca do feiticeiro negro, de Rodrigo Ribeiro, 2020
Trópico de capricórnio, de Juliana Antunes, 2020
De um lado do Atlântico, de Milena Manfredini, 2020
A gente acaba aqui, de Everlane Moraes, 2020
O suposto filme, de Rafael Conde, 2021