foco Ana Costa Ribeiro
Os curta-metragens de Ana Costa Ribeiro compreendem o período de 2001 até 2014 e foram realizados no Rio de Janeiro, com exceção de um deles, Chain (2006), realizado em São Francisco, Califórnia. Da película ao digital, esse conjunto de filmes se movimenta pelas noites das cidades, pela beira do mar, por estádios de futebol e interiores. São experiências de forma, cor, luzes e ritmo que nos permitem conhecer melhor o trabalho de Ana Costa Ribeiro e seus elementos norteadores. Em especial, o ritmo. A diretora é também montadora e isso ajuda a compreender seu zelo pela montagem, sensível em todos os filmes: uma montagem bastante atenta tanto aos cortes e às relações de continuidade e ruptura entre os planos quanto às modulações e combinações possíveis da trilha sonora.
Em Zeferina (2001) conhecemos os moradores da Comunidade Quilombola São José da Serra, localizada no município de Valença (RJ). O documentário pauta relações entre Zeferina, matriarca da comunidade, mãe de santo e descendente de antepassados escravizados, e a história da fazenda. Ela falece dois anos depois da realização do curta-metragem, em 2003, o que reforça ainda mais a importância do cuidado com sua memória. Enquanto vemos esquentarem o couro de tambores, preparando-se a roda, ouvimos ela contar sobre o jongo e sobre sua decisão de mudar uma das tradições: antes, as crianças não podiam entrar na roda, mas ela permitiu que entrassem, recordando como, em sua infância, desejava participar. Ainda sobre as crianças, ouvimos histórias sobre as festas de São Cosme e Damião, de doces e brincadeiras. Zeferina também fala de sua relação com a Umbanda, dando-nos a entender que sua aproximação com a religião, pessoal, se fez também em relação à comunidade, aproximando todos. Ao ouvi-la, portanto, o documentário também constrói um retrato das transformações empreendidas por esse coletivo – de hoje e de antes.
A dupla de filmes Beijo na santa (2002) e Chain percorrem as ruas noturnas das cidades do Rio de Janeiro e de São Francisco. Em ambos, as câmeras e o ritmo da montagem perseguem o ritmo das luzes. No primeiro deles, a projeção de fotografias de uma boca de batom vermelho percorre as superfícies do bairro Santa Teresa. As imagens estáticas projetadas ganham movimento não apenas a partir do veículo que transporta o projetor pelas ruas, mas também a partir do encontro com a pele de corpos diversos – sozinhos ou coletivos -, passando também por entre irregularidades de paredes, grades, janelas e portas. A música eletrônica e a sensualidade do beijo fazem pulsar, com leveza, o clima jovem da noite – dos bares abertos, das calçadas cheias, dos bondes cheios de gente saindo e chegando no bairro.
Já em Chain, as luzes decorrem não apenas das paisagens noturnas das cidades, mas também das bicicletas que cruzam suas vias, com fluidez, em coletivos. O curta-metragem inicia-se com uma mulher pedalando por estradas, ainda de dia. Os raios de sol explodem vermelhos na tela, os borrões de vista dos arredores compõem com o fluxo de movimento da ciclista e o vento no rosto dela parece envolver também a câmera. Ainda em cima da bicicleta, a vemos segurar uma filmadora digital portátil: chegamos à cidade, em uma imagem registrada de seu ponto de vista. O filme seguirá essas duas perspectivas e suportes, da câmera que filma a ciclista, em película, e das imagens digitais feitas por essa ciclista ao longo de uma noite de encontros. O vermelho do sol reaparece no vermelho que sinaliza as bicicletas, coloração intensificada pela qualidade da película utilizada. Os brilhinhos confundem-se com as luzes da cidade – de outros carros, postes, letreiros -, integrando e prolongando a atmosfera noturna urbana.
Balada para Futebol (2009) mobiliza imagens de arquivo para uma imersão no futebol brasileiro, em perspectiva histórica mas também performática. Os nomes de jogadores da seleção brasileira na tela, sobrepostos a imagem de um bebê recém-nascido, abarcam diversos períodos: desde os anos 1950-1960 (como Garrincha e Didi), passando pelos anos 1980 (como Sócrates e Zico) até os 1990-2000 (como Dida e Romário). O foguete sendo lançado à lua evoca o marco dos 50 anos do 1° título da Copa do Mundo pelo Brasil (1958-2008). Os anos são apresentados em contagem regressiva, por meio de cartelas. Na imagem seguinte, um carro é recebido pelo povo: é a volta da seleção brasileira de 1958 após a conquista do primeiro mundial, este que revelou Pelé, na época um jovem de 17 anos que deixou todos os torcedores do mundo maravilhados. Os movimentos do esporte surgem ritmados, em sincronia com a trilha sonora, num balé de chutes, passes e comemorações. Futebol-arte, em perfeita tradução.
“Sou uma mulher brasileira, estou voltando pra casa e gosto de carnaval”, ouvimos na voz de Ana Ribeiro. É esse o mote de Meditação de carnaval (2008), filme-ensaio que costura diversas imagens de arquivo e filmagens dos dias de festa na cidade do Rio de Janeiro. A diretora se atém ao detalhe das máscaras, desdobrando uma série de perguntas sobre o adereço. Acompanhamos suas meditações e a câmera pulando carnaval com os mascarados, mostrando-nos rostos alegres, molhados de chuva, suor e lágrimas. Beijos a dois, a três, a quatro. Mulheres tocando percussão, mulheres com flores no cabelo, mulheres de cabelo vermelho. Até bloco de guarda-chuvas desfilando, linda teimosia de continuar na festa. A experiência polifacética da celebração – tanto do carnaval quanto de seu retorno – é, para o que se diz e o que se mostra nas imagens, uma possibilidade de reflexão sobre liberdade e sobre nosso país. O que a máscara faz? O que está além dela? Como outros filmes da realizadora, percorre-se as ruas da cidade – dessa vez, a própria – para melhor conhecer seus sonhos e fantasias.
Por fim, Arpoador (2014) é um exercício poético de despedida, uma tentativa de atravessamento do luto. O curta de Ana Ribeiro comove por sua aproximação pungente e delicada ao tema temível da morte. O branco – ausência de todas as cores que contém e reflete – contrasta com o escuro profundo das fendas na rocha, da rosa negra nas ondas, da barbatana de um tubarão que emerge das águas profundas, das sombras na construção que também é ruína. Histórias de baleias extintas combinam-se a lembranças da experiência da despedida. A paisagem comparece como território de elaboração da perda, horizonte de memória e matéria de composição afetiva. Fotografias da mãe – presença de uma ausência – integram a composição, fazem borda com a paisagem, projetam-se na tela sobre a areia da praia, branco sobre branco, ausência em dobra, culminando no plano da mão paterna que acaricia a imagem materna, em gesto que torna possível tocar quem já não mais está. O cinema, aqui, é via de reinvenção feita dos restos de quem se foi e dos gestos dos que dizem adeus.
(Carla Maia e Barbara Bello)
programação
2001 – Zeferina
2002 – Beijo na Santa
2006 – Chain
2008 – Meditação de carnaval
2009 – Balada para futebol
2014 – Arpoardor